Fragmentos dos Encontros de Supervisão do Curso de AT da ESP/RS – 2

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Iniciamos a supervisão comentando os encontros do dia 09 e dia 16.

Em seguida a aluna Valdívia relatou que o trabalho de Aux. e Téc. de Enfª são apresentados em relatório de produção, porém os demais trabalhadores de nível médio não aparecem nos relatos da execução dos cuidados feitos em equipe. Ou seja, pretende-se relatar a produção global da unidade, mas para isso não parece necessário descrever o trabalho de todos.

Apenas alguns parecem ser essenciais, enquanto o trabalho de outros parece ser algo implícito, autômato e sem autoria singular. Resultado de uma massa anônima de trabalhadores que se confundem uns com os outros. É curioso que este estranhamento venha nos dizer da complexa articulação entre individualidades subjetivas no trabalho em equipe.

Outro exemplo citado:
Quando os estagiários de graduação chegam ao PSF eles são apresentados aos técnicos de nível superior, aos móveis e utensílios, salas banheiros, etc. Os demais membros da equipe não são apresentados.

Eles são trabalhadores invisíveis como é descrito no caso, já clássico, do aluno que se vestiu de faxineiro para provar a sua tese/ hipótese referente à suposta invisibilidade dos trabalhadores de nível fundamental.

Durante os meses em que durou sua pesquisa de campo ele trabalhou de faxineiro nas dependências do Campus onde fazia seu curso. Em nenhum momento ele foi reconhecido ao longo de vários meses de experimento. Nem pelos professores examinadores da banca a qual submeteu seu trabalho. O uniforme o tornava invisível.

Assim concluímos que o conceito de equipes multidisciplinares, em geral, é assimilado em tese. Mas na prática opera-se como se não fosse necessária a inclusão dos trabalhadores de nível fundamental e médio.

A Aluna Roberta trouxe a roda a sua experiência de ser responsável pelos cuidados dos pacientes na unidade de internação hospitalar em que trabalha. Ela deu-se conta de que os médicos não faziam todo o trabalho que lhes cabe referentes aos cuidados dos pacientes.

Eu expliquei que eles assinam as AIHs dos pacientes e embora não tenha volume de ações de cuidado nem tempo no local de trabalho, eles são de fato e juridicamente, responsáveis pelos 30 ou 40 pacientes que tem suas internações pagas pelo documento (uma nota fiscal de prestação de serviços do SUS) que eles assinam.

Ela se lembra de um paciente que foi examinado pelo médico antes de ela verificar os sinais vitais. Assim que ela verificou os sinais vitais, percebeu que o paciente apresentava um deslocamento de colo do fêmur. Ocorreu um mal estar entre a equipe porque a evolução no prontuário que ela fez expunha o procedimento que o médico havia realizado minutos antes. Não havia menção no registro do médico nem ao desconforto do paciente, muito menos ao deslocamento de colo do fêmur.

Em seguida conversamos sobre os casos de pacientes com Risco de Suicídio. Tanto na comunidade, quanto no ambiente de internação.

A Roberta descreveu o caso de uma paciente que saia de sua unidade e ia para outro pavilhão para cantar sozinha. Diante dos olhos de todos os demais profissionais a paciente montou ao pé de uma janela, ao longo de vários dias um kit de suicídio que incluía cacos de vidro, cordas, ferros, etc.

O caso foi resolvido quando os membros da equipe seguiram a usuária até o outro pavilhão e encontraram as "ferramentas". Diante da exposição de seus gestos. A paciente apresentou um violento surto psicótico, mas não conseguiu se suicidar.

A aluna Valdívia (que trabalha em um PSF) se lembrou de uma capacitação sobre suicídio que foi ministrada no HPS. Lá ela aprendeu que quem ameaça se mata. Especialmente se o discurso se dá na comunidade, longe dos recursos de contenção de um CAPS, ou de uma unidade de internação.

Contou que conseguiram postergar um ato suicida que começou com um episódio de ingestão de medicação na casa do usuário. A equipe do PSF tentou fazê-lo aderir ao tratamento ao longo de muitas idas e voltas. Numa oportunidade em que os pais pensaram que ele estava melhor da ideação suicida, ele se enforcou numa peça da casa ao lado de onde os pais estavam.

Por outro lado, alguns dependentes químicos têm sido executados na mesma região do PSF. A agente comunitária de saúde relatou o caso de um viciado que aderiu ao tratamento, foi acompanhado pela Técnica de Enfermagem em seus plantões até que aceitasse iniciar um tratamento sistemático em um serviço especializado de saúde mental. O rapaz melhorou, começou o tratamento. Em seguida, num descuido recaiu.

O irmão dele conseguiu nova internação em uma fazenda terapêutica. A mãe achou que ele estava medicado demais e assinou uma alta a pedido. Preferiu levá-lo para o Hospital Vila Nova. Quando ela chegou de volta a casa, ele já estava na sala conversando com a avó.

Vários roubos, furtos, intercorrências, muita insistência para fazer vínculo e adesão ao tratamento, finalmente aconteceu o que se temia. O rapaz foi seqüestrado na porta de sua casa, levado a outra vila e executado com três tiros na cabeça.

O método de trabalho no PSF (segue relatando Valdívia) é buscar de rua em rua, pegando confiança, lidando com os problemas imediatos de saúde, até que apostando na equipe, eles pedem ajuda.

No PAM 3 é difícil conseguir internar o jovem viciado porque a família dá banho, corta o cabelo e veste-o com a melhor roupa para ele ser avaliado pelo psiquiatra da emergência. Resultado: bem vestidos e arrumados eles não são internados.

Quando, finalmente conseguem a internação, tem 21 dias de isolamento. O referenciamento na rede para o pós-alta é difícil – não se consegue vaga em CAPS AD e o círculo vicioso reinicia o giro: Retorno ao ambiente familiar desestruturado, recaída, investimento para reatar o vínculo com a equipe, nova internação, alta sem referenciamento para CAPS AD, recaída… Nestes casos o acompanhamento terapêutico seria útil, segundo Valdívia, para manter o vínculo durante a internação e articular o acolhimento em um CAPS AD.

Outro problema é o ambiente familiar. Eles querem um "comprimidinho" uma "pomadinha” para resolver o complexo círculo vicioso da drogadição. E, claro, o indefectível: Jesus cura, Jesus salva!

28 anos, 1,88 m e 50 kg. Assim foi encontrado um rapaz numa rua da região da equipe do PSF em que Valdívia promove o cuidado e a saúde. Com cuidado e paciência a equipe o ajudou a decidir-se pelo tratamento para o vício em crack e outras drogas. Ele aceitou ir para uma comunidade terapêutica. Logo que seu filho nasceu ele disse: – Se vocês conseguirem uma vaga, eu vou.

Para se internar ele teve que fazer uma perícia no INSS. Foi a condição da administração da fazenda terapêutica para recebê-lo. Com isso acertado chegou o dia de ir.

Ele olhou nos olhos de toda a equipe que tinha caminhado a seu lado até aquele momento e disse: – Eu “to” indo porque confio em vocês.

Ele ficou seis meses isolado na comunidade terapêutica. A ex-esposa, mãe do filho de menos de um ano, foi vê-lo. Ele mandou um bolo feito por ele para a equipe do PSF.

Nove meses depois o rapaz entrou no PSF e não foi reconhecido. Bonito, bem vestido e feliz, ele veio agradecer.

Epílogo:
A família não havia mudado. Ele voltou a ficar triste. O pessoal da equipe do PSF disse: Sai daí. Saí, ou tu vais recair. Hoje ele mora em uma outra comunidade onde ele cuida de adolescentes em situação de vulnerabilidade social.
 

 

 

 

Já Renata e a Ricarda trabalham numa enfermaria de moradores com diagnóstico, na maioria dos casos, de esquizofrenia residual e transtorno de personalidade limítrofe – borderline. Relataram que a maioria dos usuários com borderline costuma gastar todo o benefício, evitando assim uma possibilidade remota de virem a ter alta.

Na unidade não há altas de ressocialização. São pacientes institucionalizados que sobraram da inauguração do SRT Morada. Eles não saíram para o “Morada” por que são muito regressivos e dependentes.

Uma, por exemplo, come fezes, dinheiro e as próprias fraldas. Ela é aposentada e não consome o benefício, de modo que já tem cerca de R$ 150.000,00 reais em uma caderneta de poupança. Algumas bem feitorias da unidade em que ela esta internada há várias décadas, forma compradas com dinheiro dela porque o estado não faz nem investimento nem manutenção: ar condicionado, portas, móveis, entre outras coisas.

Estes moradores estão há tanto tempo internados que o normal para eles é ver os profissionais irem embora, enquanto eles vão ficando. A casa deles é a clausura. A casa deles o manicômio. A casa deles o Hospital psiquiátrico. Mesmo assim eles não têm casa. São como cobaias em um grande experimento de formação de profissionais da saúde. Relíquias em exposição.

Estes pacientes, quando não são cronicamente incapacitados para o autocuidado, têm medo de ir para o SRT porque o bairro é violento. Então mesmo com certa autonomia elas estão institucionalizadas e sentem-se seguras internadas.

Em uma ocasião, a equipe pegou o prontuário de uma paciente que havia falecido um dia antes. A história de seu errar pelo mundo até chegar à unidade de internação em que veio a falecer (depois de mais de uma década internada) levou todas as trabalhadoras as lágrimas.

 

Algumas observações:

Estes encontros com os trabalhadores de nível médio e fundamental tem a peculiaridade de produzirem relatos que não são modulados por teorias mais rígidas que prescrevem hipóteses sobre o real. Aqui real se impõe antes da análise e as teorias ou ontologias que os sustentam ficam em silêncio. Como se diz, vemos uma realidade nua e crua. Para cada fato relatado por um profissional graduado sempre há uma observação que explica ou resolve o real de acordo com sua formação teórica, de acordo com seu paradigma científico.

Com as agentes comunitárias, porteiros, auxiliares de enfermagem, primeiro vem o relato, o real. Depois vamos caminhando pela trilha dos conceitos teóricos, costurando uma análise singular que frequenteente mistura senso comum e conhecimento científico. Embaralhamos alguns paradigmas, a conversa segue rumos inusitados e só no final temos um precário cenário explicativo do mundo e das relações sociais, ninguém tem a pretensão de ter dito verdades profundas ou de ter encontrado em algum autor uma grande verdade. Todos falaram sua versão dos fatos. Vários autores foram evocados ao lado de experiências com as prescrições culturais, a autoridade dos mais velhos, a inovação dos jovens. Preparamos um consenso provisório – natureza e cultura se confundem. Ele ajuda a significarmos o impacto do mundo em nosso sentir e fazer e a dar um sentido para o impacto que causamos no mundo. Experimentamos a transcendência e imanência de nosso estar no mundo.

Sem a ansiedade de digladiarmos nossas visões de mundo. Este aspecto me pareceu importante ressaltar, uma vez que minha experiência em seminários e congressos guarda certa memória da angústia ontológica de ver nossos paradigmas de graduação em questão a cada palestra, a cada fala, a cada nova leitura que fazemos.

Esta lição me fica: ao incluirmos todos em uma assembléia que pretende a construção do bem comum e a afirmação da vida as ontologias só são ameaçadoras se pretenderem nos paralisar.