Família, comunidade e judicialização do cuidado.

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Quando um Juiz assina uma sentença recomendando, institucionalização ou mais uma, em numa sequência de internações compulsórias, para uma pessoa em sofrimento psíquico, ele está enviando uma mensagem. Sim, muitas vezes ele responde a uma demanda dos próprios serviços de saúde, de assistência social e do Ministério Público. Mas, cada vez mais as famílias vêm pedindo a institucionalização de portadores de sofrimento psíquico.

O critério para o encaminhamento desses pedidos não está diretamente relacionado a casos extremos de sofrimento agudo. Nem sempre são casos refratários à combinação da abordagem técnica, afetiva e medicamentosa. Na maioria das vezes o conjunto de sintomas do usuário expressa uma falência na qualidade, quantidade e sustentabilidade de vínculos afetivos na família e na comunidade. O processo de cronificação do sofrimento, começa com a primeira internação compulsória e acaba em uma série de internações em que o suporte afetivo relacional que poderia aliviar o sofrimento é substituído pela internação reiterada. É, evidentemente, uma necessidade extrema para situações extremas. Não pode ser via de regra para situações recorrentes.

Nesse sentido, o impacto psicossocial da mensagem implícita nessas sentenças judiciais, chega diretamente às comunidades e famílias. Interfere com o imaginário a respeito do que é tido como possível, do que faz sentido esperar como conduta ética a respeito do limite de nossas responsabilidades com nossos parceiros de existência.

O papel do poder judiciário não pode ser subestimado. Ele transcende a arbitragem de conflitos e a guarda de direitos. Pela prerrogativa iluminista de credibilidade e lugar de enunciação de verdade, o que um juiz prescreve na forma de sentenças, penetra no imaginário social até o nível do senso comum. Especialmente quando a mídia reproduz o discurso da higienização ad nauseam.

Essas sentenças reiteradas estabelecem um consenso tácito de que o intenso sofrimento desencadeado nas relações comunitárias e familiares não pode ser resolvido onde ele é produzido. As sentenças decretam no imaginário coletivo, uma aceitação da impotência. Famílias e equipes da assistência social, educação e saúde entre outras, são levadas a acreditar que pessoas em sofrimento psíquico agudo não podem ser cuidadas em sociedade.

Em alguns momentos isso corresponde à realidade. É, tristemente, um fato. Mas que seja um recurso usado sistematicamente corresponde a uma confissão da falência da capacidade humana de tecer e sustentar vínculos de reciprocidade e afeto. E, isso felizmente, é raro.

O que pode significar a informação de que um jovem adolescente tenha sofrido 50, 60 internações no período de um ou dois anos? Como analisar o fato de que grande parte desses jovens tenham passado grande parte da infância e adolescência em abrigos ou casas lares, cumpram medidas sócio educativas ou estejam vivendo sem o apoio de adultos de referência com os quais tenham vínculos puramente afetivos? Não será a internação uma forma de desistir da aposta de que laços e vínculos comunitários possam ser produtores de saúde? E como uma sociedade pode ser viável sem que possamos contar com isso?

Quando refiro vínculos puramente afetivos quero alertar que a relação técnica profissional não pode ser efetiva se não for parte de um conjunto de relações que incluam laços de afeto, carinho e amor caracterizados pela gratuidade e não somente parte de uma relação profissional.

A internação hospitalar como resposta a cronificação da vulnerabilidade está alimentando um estado de anomia extremamente preocupante. Ao afastar o sofredor do convívio social apaga-se o vestígio da produção do sofrimento. Assim, sem poder relacionar causa e consequência, a potência de exercitar a produção de saúde em condições adversas é perdida.

Não se trata de que desordens nos núcleos familiares não sejam um fenômeno recorrente historicamente. O que é peculiarmente contemporâneo é a atomização das relações de afeto e cuidado num núcleo reduzido de pessoas. Se olharmos para o dado estatístico das condições de vulnerabilidade social, veremos que a agudização e cronificação do sofrimento só não são mais graves por que madrinhas, tias, tios, irmãos mais velhos, vizinhos ou simplesmente amigos se ocupam de prover vínculo e afeto para pessoas em situações de risco.

Então, o que é eficiente não é criar cada vez mais equipamentos e apêndices institucionais em que o afeto é mediado exclusivamente de modo técnico e profissional. Isso é necessário, deve crescer junto com a curva de aumento populacional e de acordo com as peculiaridades culturais que atenuem ou acentuem a variável epidemiológica do sofrimento psíquico.

Mas a eficiência no trato e no cuidado às pessoas em estado de sofrimento intenso depende de investimento no vínculo, na aliança e no cuidado mediado por sentimentos como solidariedade, pertencimento, respeito, que são os ingredientes da amizade e do amor. O papel de fatores como a gratuidade afetiva em nossa própria saúde mental não pode ser desvalorizado.

Escutamos relatos de impotência materna para cuidar de filhos deficientes ou doentes mentais nos mais diversos ciclos de vida. Na maior parte das vezes a perda da capacidade para cuidar não se relaciona apenas com as condições de agudização do sofrimento do familiar.

A falta de apoio de redes comunitárias e institucionais, de amigos e parceiros fala mais alto do que o quadro de sintomas. Como o próprio termo indica, sintomas apontam para determinantes. E, os determinantes do cuidado, ou do abandono e da negligência são socialmente construídos. A linha do que é insuportável, do limite da sustentação dos custos é relativa. E sempre que se pode compartilhar a responsabilidade de cuidar, nossa capacidade de proteger aumenta. Passa mesmo a ser saudável poder cuidar na medida adequada.

Uma ordem judicial que descreva o sofrimento como uma ameaça a seus familiares, resume inadequadamente um quadro complexo composto de vulnerabilidades, potencias e impotências. Ao indicar que o conflito familiar se resolverá numa mera internação psiquiátrica, prejudica-se o entendimento que as pessoas podem construir sobre as causas e possibilidades de alivio e cuidado inerentes aos recursos familiares e comunitários.

O equilíbrio entre o suporte técnico e institucional, distribuído no território através dos pontos de atenção da RAPS (Rede de Atenção Psicossocial) e o apoio das famílias e das comunidades são essenciais. Um fator não pode, simplesmente, suprir a ausência do outro. A economia das relações familiares é complexa e ancestral. Qualquer sinalização para o imaginário coletivo de que podemos superar o sofrimento apenas com recursos técnicos e profissionais é falaciosa. Não passa de uma forma de higienização requintada que acaba por aviltar a humanidade de todos os envolvidos.