Antonin Artaud: Carta aos Médicos-chefes dos Manicômios (1925)

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Antonin Marie-Joseph Artaud nasceu em Marselha a 4 de setembro de 1896, filho de um empresário de transportes marítimos e descendente de gregos tanto pelo lado materno como paterno. Desde criança, teve sérios problemas de saúde, inclusive mental. Aos 19 anos fez sua primeira internação em um sanatório, passando posteriormente por sucessivos tratamentos psiquiátricos.
Artaud teve uma vida cultural intensa, dedicando-se ao cinema, teatro e à literatura. Entretanto, a sua forma de expressão preferida eram as cartas.

Contam os pesquisadores da sua bibliografia que ele só conseguia escrever apaixonadamente dirigindo-se a algum interlocutor.

Compartilho aqui uma das suas cartas em que faz uma crítica sobre o tratamento psiquiátrico nos manicômios, publicada no blog Intensidadez (Arte, filosofia, micropolítica, IntensidadeZ e outramentos…)

 

Antonin Artaud: Carta aos Médicos-chefes dos Manicômios (1925)
                                                   

                                                Por Antonin Artaud | Trad.: Cláudio Willer

 

Senhores,

As leis e os costumes vos concedem o direito de medir o espírito. Essa jurisdição soberana e temível é exercida com vossa razão. Deixai-nos rir. A credulidade dos povos civilizados, dos sábios, dos governos, adorna a psiquiatria de não sei que luzes sobrenaturais. O processo da vossa profissão já recebeu seu veredito. Não pretendemos discutir aqui o valor da vossa ciência nem a duvidosa existência das doenças mentais. Mas para cada cem supostas patogenias nas quais se desencadeia a confusão da matéria e do espírito, para cada cem classificações das quais as mais vagas ainda são as mais aproveitáveis, quantas são as tentativas nobres de chegar ao mundo cerebral onde vivem tantos dos vossos prisioneiros? Quantos, por exemplo, acham que o sonho do demente precoce, as imagens pelas quais ele é possuído, são algo mais que uma salada de palavras?

Não nos surpreendemos com vosso despreparo diante de uma tarefa para a qual só existem uns poucos predestinados. No entanto nos rebelamos contra o direito concedido a homens – limitados ou não – de sacramentar com o encarceramento perpétuo suas investigações no domínio do espírito.

E que encarceramento! Sabe-se – não se sabe o suficiente – que os hospícios, longe de serem asilos, são pavorosos cárceres onde os detentos fornecem uma mão-de-obra gratuita e cômoda, onde os suplícios são a regra, e isso é tolerado pelos senhores. O hospício de alienados, sob o manto da ciência e da justiça, é comparável à caserna, à prisão, à masmorra.

Não levantaremos aqui a questão das internações arbitrárias, para vos poupar o trabalho dos desmentidos fáceis. Afirmamos que uma grande parte dos vossos pensionistas, perfeitamente loucos segundo a definição oficial, estão, eles também, arbitrariamente internados. Não admitimos que se freie o livre desenvolvimento de um delírio, tão legítimo e lógico quanto qualquer outra seqüência de idéias e atos humanos. A repressão dos atos anti-sociais é tão ilusória quanto inaceitável no seu fundamento. Todos os atos individuais são anti-sociais. Os loucos são as vítimas individuais por excelência da ditadura social; em nome dessa individualidade intrínseca ao homem, exigimos que sejam soltos esses encarcerados da sensibilidade, pois não está ao alcance das leis prender todos os homens que pensam e agem.

Sem insistir no caráter perfeitamente genial das manifestações de certos loucos, na medida da nossa capacidade de avaliá-las, afirmamos a legitimidade absoluta da sua concepção de realidade e de todos os atos que dela decorrem.

Que tudo isso seja lembrado amanhã pela manhã, na hora da visita, quando tentarem conversar sem dicionário com esses homens sobre os quais, reconheçam, os senhores só têm a superioridade da força.

Antonin Artaud

[Escritos de Antonin Artaud, tradução, notas e prefácio de Claudio Willer, L&PM, 1983 e reedições]