O processo de transformação do cuidado na saúde mental

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A seguinte resenha abrange o processo de transformação do cuidado na saúde mental. O Movimento de Reforma Psiquiátrica em curso no Brasil a partir da segunda metade da década de 1970 vem produzindo uma nova perspectiva sobre a loucura, questionando não só as instituições e as práticas de cuidado, mas os conceitos e saberes que as legitimaram. A saúde mental, conforme Amarante (2007) passa a se configurar como um campo ou área de conhecimento e atuação técnica no âmbito das políticas públicas de saúde, complexo, plural, Inter setorial e marcado pela transversalidade de saberes. A Reforma Psiquiátrica traz consigo uma verdadeira revolução teórico-conceitual. Aos sujeitos envolvidos nesse amplo e complexo processo social, conforme pontua Amarante (2007) faz-se imprescindível à compreensão de um conceito ampliado de saúde, da clínica ampliada, do trabalho interdisciplinar e Inter setorial, da noção de rede e de territorialidade, entre tantos outros.

Apesar de todos os limites postos pela adoção do ideário neoliberal que restringe as ações de proteção social e entre elas à saúde, a atenção à saúde mental no Brasil vem mudando consideravelmente, com a adoção de um sistema de assistência orientado pelos princípios do SUS. As redes de assistência à saúde mental, organizadas considerando-se os conceitos de territorialização e intersetorialidade, com toda uma lógica do cuidar de forma humanizada e na perspectiva da inclusão social é um fato no país. A partir do ano de 1992, os movimentos sociais, inspirados pelo Projeto de Lei Paulo Delgado, conseguem aprovar em vários estados brasileiros as primeiras leis que determinam a substituição progressiva dos leitos psiquiátricos por uma rede integrada de atenção à saúde mental. É a partir deste período que a política do Ministério da Saúde para a saúde mental, acompanhando as diretrizes em construção da Reforma Psiquiátrica, começa a ganhar contornos mais definidos.

É nessa conjuntura, marcada pelo compromisso firmado pelo Brasil na assinatura da Declaração de Caracas e pela realização da II Conferência Nacional de Saúde Mental, que passam a entrar em vigor no país as primeiras normas federais regulamentando a implantação de serviços de atenção diária, fundadas nas experiências dos primeiros Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), os Hospitais-dia, residências terapêuticos(RT), entre outros e as primeiras normas para fiscalização e classificação dos hospitais psiquiátricos (BRASIL, 2005). Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), dentre todos os dispositivos de atenção à saúde mental, têm valor estratégico para a Reforma Psiquiátrica brasileira. É o surgimento destes serviços que passa a demonstrar as possibilidades de organização de uma rede substitutiva ao Hospital Psiquiátrico no país (BRASIL, 2005). A política de saúde mental no Brasil ao adotar como eixos principais a desmanicomialização, a organização de rede de serviços de saúde mental substitutivos e o reconhecimento dos direitos de cidadania das pessoas com transtorno mental exigem transformações profundas nos modos de conceber o cuidado e organizar os serviços em confronto com as concepções e estratégias tradicionais, o que implica na definição de novos perfis profissionais (MANGIA; MURAMOTO, 2006). E, na construção desse novo perfil profissional, as universidades assumem papel fundamental. O grande desafio posto às unidades formadoras não é outro senão formar profissionais mais humanistas, capazes de atuar numa perspectiva integral e interdisciplinar, em consonância com os princípios defendidos pela Reforma Psiquiátrica, pela Reforma Sanitária e impressos no SUS. Todo esse processo em curso exige a formação de profissionais dotados de capacidade de reflexão crítica e com competência técnica para se envolverem numa prática de cuidado que se constitua num exercício de transformação para todos os envolvidos: pacientes, profissionais e as redes sociais em volta deles. Só isso permite manter a esperança de construção de uma nova atitude epistemológica e ética frente ao fenômeno da loucura (BEZERRA JR., 2007). O fato é que a adoção de novos paradigmas na saúde mental e de novas práticas assistenciais desafia a formação acadêmica não só na questão teórica e técnica, mas na criatividade, no compromisso e na crítica comprometida com a cidadania. Bezerra Jr. (2007) considera que a formação de recursos humanos é um desafio fundamental neste contexto, uma vez que a maior parte dos novos profissionais da rede de atenção à saúde mental é formada por jovens formandos que não passaram pelo processo de luta política e ideológica que envolveu a criação do movimento antimanicomial. Amarante (2008) sugere que os profissionais que trabalham com a complexa questão da saúde mental poderiam, e nos entendemos que deveriam, receber em suas formações, reflexões mais amplas, mais problematizadoras, inclusive sobre a complexidade da existência humana.

O profissional de saúde mental, e porque não dizer as pessoas, em geral, precisa entender que a “convicção antimanicomial” não nasceu como “pura ideologia”, mas como conseqüência de conhecimentos e estudos que ousaram questionar os dispositivos e as estratégias de dominação e anulação do sujeito que marcaram historicamente a (des)atenção à saúde mental, a exemplo dos hospitais psiquiátricos (AMARANTE, 2008). Tal formação compreende uma tarefa complexa, pois se de um lado é preciso dar aos discentes formandos uma base teórica e técnica sólida, de outro é indispensável suscitar nos mesmos uma vocação crítica e criativa, de modo a atender aos desafios que um processo de transformação do porte da Reforma Psiquiátrica impõe. Tais exigências, inclusive, são instituídas pelas diretrizes curriculares nacionais dos cursos de graduação na área da saúde aprovadas em 2001 e 2002, elas apontam, como necessidade, a formação generalista, humanista, crítica e reflexiva dos profissionais das diversas áreas da saúde.

Tal perspectiva mostra-se insuficiente para atender ao que preconiza a Reforma Psiquiátrica e o próprio SUS, que foi estruturado considerando o conceito ampliado de saúde, a saúde como direito universal e a atenção integral entre outros, o modelo de atenção médico-centrado e hospitalar (flexneriano) convocava um profissional de saúde mental subordinado à organização parcelada do trabalho e afirmava a cura ou a adaptabilidade social do doente mental, secundarizando a percepção e o saber do portador de sofrimento psíquico. As mesmas autoras afirmam que: “no Brasil, a necessidade de saúde do portador de sofrimento psíquico esteve submetida à ordenação jurídica que respondeu ao clamor social da década de 30 do século XX, prestando-se ao controle do alienado”.

A Reforma Psiquiátrica compreende um movimento em favor da mudança dos modelos de atenção e gestão nas práticas de saúde, defesa da saúde coletiva, equidade na oferta dos serviços e protagonismo dos trabalhadores e usuários dos serviços de saúde nos processos de gestão e produção de tecnologias de cuidado. No Brasil, este processo foi desencadeado num momento de intensa mobilização social pelo retorno da ordem democrática e fortemente influenciada pelo movimento de reforma na assistência psiquiátrica italiana. Compreende algo muito mais amplo que uma simples reestruturação de serviços. Implica um processo social amplo e complexo no qual é necessária uma reflexão sobre o modelo científico da psiquiatria, que não consegue ver saúde nas pessoas, apenas doenças. Fica clara a necessidade da formação de competências profissionais para a saúde mental tendo como referência a Reforma Psiquiátrica e como estratégia de reordenação o SUS.

O “louco” tem direitos como nós, às vezes poderão ser tão normais como nós, desde que voltemos os nossos olhos para eles e estendamos a mão para tirá-los destas cavernas que os impedem de serem o que são; seres humanos.

Texto elaborado para a disciplina de Introdução à Psicologia da Saúde, ministrada pelo Profº Ms. Douglas Casarotto de Oliveira, no Curso de Psicologia da Faculdade Integrada de Santa Maria – FISMA.