Relação Caps, loucura e religião: a união desses fatores como processo do conhecimento

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Compreender a interface entre a saúde mental e a religião tornou-se imperativo, tanto pela importância da religião na vida dos usuários e dos familiares, como pelo reconhecimento da religião enquanto agência terapêutica e recurso comunitário, na ótica e na experiência dos sujeitos desta resenha que é pertencente ao artigo “Para Além e Aquém de Anjos, Loucos ou Demônios: Caps e Pentecostalismo em Análise”.
Desse modo esta resenha, parte do pressuposto de que a relação entre Caps e religião situa-se em um campo de forças, podendo reproduzir tensões históricas entre a ciência e a religião como modos de produzir saberes, fazeres sobre a loucura e sobre o louco. A palavra loucura não aparece nos discursos como um modo de entendimento da experiência do sofrimento psíquico, ao invés, usa-se entre a maioria dos entrevistados que aparecem no trabalho, a palavra depressão. A palavra loucura parece ter um certo preconceito ainda ao ser dita, e a depressão um modo de ser mais aceito perante à sociedade. Outro modo de se subtender a loucura aparece para alguns dos familiares dos entrevistados como sendo um problema de natureza espiritual, outros relatos são vistos a loucura como uma possessão demoníaca, estes pertencentes à religião evangélica, conforme informou uma entrevistada. Foi de um modo bastante significativo a ausência de categorias sobre a loucura, como diferença, desrazão, estranhamento, que afirmam a experiência da loucura.
A presença da religião na vida de quatro entrevistados mostra-se de forma bem evidente, com ênfase na matriz religiosa familiar e a inserção no espaço religioso desde a infância, sendo que dois sujeitos migraram do catolicismo para o pentecostalismo, enquanto que os outros dois são evangélicos desde a infância. A religião para duas pessoas, emerge como principal modo de subjetivar a loucura, aparecendo como agência terapêutica, para outros, a religião como propiciador de uma cura, através do ritual do exorcismo. Recorrer à religião para maior parte das pessoas, torna-se essencial e um modo de obter apoio no momento difícil e de dor. Mesmo não sendo frequentador de igrejas e orar seja um hábito, muitas são as pessoas que no momento onde nada mais parece possível, pedem ajuda à Deus. As crenças podem por vezes dar esse apoio necessário nos momentos de aflição, por exemplo, podem ajudar esses aflitos a não desistirem de sua cura, de estar sempre buscando seu bem terapêutico.
Dois dos entrevistados também são marcados pela experiência enlouquecedora da internação em hospital psiquiátrico que, em um dos casos, ocorreu mesmo após ser acompanhado pelo Caps. Esses entrevistados não veem o Caps enquanto um modo de cuidado no momento da crise, a qual é entendida como uma realidade subjetiva e coletiva. Apesar de tecerem críticas a este modelo, apontam para o caráter imprescindível da necessidade do hospital nos momentos de crise, sendo reiterado pelos seus familiares. A necessidade do manicômio é reforçada pela dificuldade apresentada pelo Caps em abordar a crise, encaminhando alguns usuários para internação psiquiátrica, uma vez que não possui leitos no Hospital Geral e nem um Caps III, que poderiam prestar um cuidado mais intensivo no momento da crise. Se, por um lado, a Política Nacional incentiva a expansão da rede de serviços comunitários e territoriais, centrando na estratégia Caps, por outro, o fechamento dos hospitais psiquiátricos, após o processo de redução progressiva de leitos, ainda se constitui como um futuro quase inalcançável, não havendo clareza nem um planejamento definido. De acordo com uma das entrevistadas, o Caps apresenta dificuldades em lidar com as questões do cotidiano, com sua diferença, inquietude e movimento de recusa em aderir aos projetos terapêuticos impostos pelo serviço. Em outro caso, esta dificuldade também aparece evidenciada pela ausência de um técnico de referência do próprio serviço, bem como pela intolerância dos profissionais do Caps com os recorrentes pedidos para realização do exame de HIV. Outro fato é o uso de psicofármacos, onde o Caps confirma-se pelo modo como todos se referem sendo um lugar de medicação no projeto terapêutico. É importante também ressaltar a importância dada por religiosos à medicação, a pílula medicinal, vista como produção de Deus.
Essa pesquisa, sem dúvida contribuiu para a problematização das práticas instituídas, em que foi abordada a temática da religião. A equipe reconheceu o seu desconhecimento sobre a dimensão religiosa, tão presente no cotidiano dos usuários, assim como assumiu o preconceito e a dificuldade em lidar com a religião pentecostal, visto que uma vez se sentiram impelidos a buscar a igreja, porque o pastor havia decidido internar no hospital psiquiátrico um usuário do serviço. A perspectiva de encontro entre o Caps com o espaço religioso é fundamental para romper com essa “batalha” gerada nas experiências dos usuários e familiares, fazendo com que não se sintam impelidos a falar das experiências no Caps e na igreja, pelo reconhecimento da desarticulação e da disputa de saberes, poderes e projetos deles.
É de importante necessidade que não sejam vistos como espaços fechados, individuais; e sim como uma totalidade, um conjunto. O encontro com a Análise Institucional foi crucial para a compreensão de que se trata da análise da religião pentecostal e do Caps como instituições, cada uma importante, porém com seu manual: a Bíblia com seus mandamentos de um lado, e o manual do Caps com as portarias, de outro, onde se possa unir a oração e a medicação como propostas de salvação.