PARA NÃO DIZER QUE NÃO FALEI DOS VIVOS. DO BOLINHO DE BACALHAU E DA CAMALEÔNICA PNH…

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Saudações companheiros Susistas!

Em primeiro lugar, este post pretende ser comentário de diversos outros importantes e necessários que abriram um debate importante sobre a controversa existência da PNH, sempre camaleônica em suas manifestações e que, na ordem de aparecimento, são:

https://redehumanizasus.net/91613-repudio-ao-fim-da-pnh-enquanto-politica-de-governo
https://redehumanizasus.net/91684-politica-nacional-de-humanizacao-compoe-novo-arranjo-de-apoio-do-ministerio-da-saude-as-regioes-de-saude
https://redehumanizasus.net/91704-sobre-o-fim-da-pnh-enquanto-politica-de-governo
https://redehumanizasus.net/91722-pnh-como-politica-de-governo-fim-ou-mudanca

Pois bem, a necessidade que senti de me estender sobre alguns assuntos neles levantados faz com que opte por um novo post, pois certamente ultrapassaria o tamanho para apenas comentário e, enquanto comentário, acabaria tendo que ser repetido em todos os outros postados.

Manifesto-me, como prometido em comentário no último post citado, não só porque vejo com alegria esta conversa pública que, a meu ver, é formadora e ao mesmo tempo apoiadora dos movimentos pelo SUS que dá certo, independente se muitas vezes pode, no calor excessivo, parecer que é um bate boca entre composições e oposições eivadas de interesses personalísticos. Certamente assim também o é, porque todos nós nela envolvidos somos humanos, demasiadamente humanos, para a nossa glória e desespero. Ninguém aqui é puro anjo ou demônio e, portanto, abdicarei, em meus comentários, de considerar que na frente ou atrás vem gente do mal ou do bem, porque considero que militar pelo SUS, trazendo sua singularidade para a roda, expressando-se ela do jeito que puder e souber se expressar é sempre positivo. Trazer o conflito para a roda, encarná-lo no combate intensivo, na afirmação da diferença, a meu ver, é a alma do princípio democrático.

Democracia é diferença, é cogestão de muitos para muitos, não é fazer para ou por, é fazer com e, para isto, as tensões precisam aparecer com todas as suas cores para que ao final, no combate, surja algum comum provisório. Digo isto porque é assim que encaro o que até aqui tem se apresentado nesta discussão sobre a PNH, que, certamente, se ri de todos nós e passeia e dança viva em meio ao calor dos corpos que, com seu protagonismo, dão sua contribuição para o reencantamento do movimento instituinte que foi, é e deverá ser o SUS.

Para poder falar de cara limpa, sou ex-consultor da PNH porque decidi sair nas últimas investidas que desmontaram ou redirecionaram a PNH, como queiram, e, por ter decidido sair, sem entrar em detalhes, já bem podem ver que não considerei factível minha permanência naquilo que ora denominam a PNH, ou a nova PNH. Como sou avesso a todos os tipos de modelizações, acho que entre a oposição e a composição cabe um mundo de multiplicidades e, assim, não me considero nem compositor nem opositor do atual movimento, como diz Ricardo Teixeira na esteira de Edu Passos e Regina Benevides, também prefiro acompanhar "com atenção os desdobramentos destas mudanças para saber se os princípios construídos nestas experimentações poderão reverberar nas novas configurações da máquina do Estado". Mas isto tem certo limite que já já explicarei.

Parabenizo a Maria de Jesus e os valorosos articuladores de São Paulo por terem publicizado seu repúdio; à Cleusa pela necessária manifestação pública dos moldes em que se deu aquilo que aparece como a PNH compondo o novo arranjo de apoio do MS às regiões de Saúde, post que também parabenizo, assim como o primoroso post do Ricardo Teixeira, que junta todos em um, numa faina de composição da conversa e, de quebra, como se não bastasse, dá sua importante contribuição ao assunto, tentando qualificar a conversa, numa tentativa de tentar trazer um comum de entendimento do que estamos falando, com sua cuidadosa digressão sobre política de governo.

Que belezura ver tantos consultores (muitos ex-consultores PNH) participando da conversa, coisa raríssima por aqui, apesar de sempre desejada e estimulada. Maravilha ver que somos tão diferentes e diversos em nossos entendimentos e, que, acima de tudo, somos vivos na paixão que nos conclama à luta pelo SUS. Mas melhor que tudo isto, ver nossos formadores príncipes, nossos companheiros dos territórios, se manifestarem e, com eles, trazerem a tão importante e diversa dimensão pública da PNH, a única, como vejo, que mais importa. Políticas de governo passam com os governos, política pública permanece, neste sentido, a PNH não só vive, mas fala, tem voz e se diz por si mesma. Obrigado companheiros dos territórios.

Sem desqualificar a importância do que os consultores e ex-consutores trazem para o debate, ao contrário, achando que isto deve continuar para este e outros assuntos, pois é material de formação de todos nós, num trânsito de mão dupla, pois formamos os territórios e eles nos formam com o seu saber, quero, neste post, colocar tudo isto entre parênteses, numa suspensão, para falar com as brilhantes Marias e Raphaéis do Brasil afora, porque, se estiver enganado me digam, acho que o que eles colocam não foi ainda contemplado por nenhum dos materiais postados.

O debate, a meu ver, está tomando um desnecessário tom, digamos, ‘acadêmico’, quando o repúdio, a tristeza, a desolação, o desamparo, a indignação (falo aqui dos sentimentos expressos nos comentários que tenho acompanhado na RHS e no Facebook) e que, por economia, sintetizarei numa única expressão: um sentimento de desfiliação que gera uma sensação de orfandade; uma orfandade de abandono que causa tristeza, por um lado, num sentimento de ter sido violentado no cerne mesmo daquilo que mais que acreditar, vivem e envidam esforços vitais de comprometimento e corresponsabilidade e que, de repente, são simplesmente sentidos como deixados de lado, como de menos importância para as novas estratégias de governo, sejam por quais motivos forem. São, e aqui falo como analista do trabalho, minha expertise, expressão mais que comum de todos os trabalhadores frente a modelos de gestão que não os levam em conta naquilo que sentem e expressam, muito embora os utilizem para suas estratégias.

Vamos lá companheiros, tenhamos ouvidos não surdos, os trabalhadores dos territórios estão repudiando a sensação de serem apenas instrumentos de uso de políticas que se modificam ao bel prazer de gestores, infelizmente personalísiticos, que querem impor sua marca e, para isto, desconsideram o que já existe e é sentido como movimento que dá certo, como um oxigênio no meio da sufocação de um verticalismo solapador da vida, principalmente, da vida afetiva. É a isto que eles chamam fazer sempre o mesmo. O repúdio é ao abuso de suas vidas, de seus esforços, de seu engajamento, de seus afetos. E como não seria assim? Estamos, nós trabalhadores, diria do mundo inteiro, cansados de nos vermos triturados por uma máquina de fazer sempre o mesmo e de termos que começar sempre de novo, porque simplesmente o que funciona e dá certo é desmontado em nome de um projeto melhor. Cansamos deste tipo de messianismo dos infernos.

Leiam com atenção e cuidado o que nossos formadores do território, apoiadores, articuladores, trabalhadores, estão nos dizendo. Pífio, se acharem que a Cleusa os incitou com a sua verdade, porque, se formos ver em Santa Catarina, o Carlos colocou a coisa de outro jeito “mais suave” e, no entanto, como as Marias Josés de São Paulo, os Raphaéis de Santa Catarina sentiram do mesmo jeito.  Prefiro, como analista do trabalho, ler as coisas de outro jeito. Diante do desconforto dos consultores frente a serem obrigados a saírem de movimentos, abandonando aqueles que se engajaram, lutaram e se comprometeram, sentido que faziam a diferença para a sua realidade, como não ver aí uma atmosfera comum de violência institucional que se abateu sobre todos, apoiadores e apoiados, se sabemos que esta relação, ao menos na militância PNH, não se separa?

Raphael está certo em sua sensibilidade política, porque a figura que ele vê no post do Ricardo Teixeira o remete para a sua sensação de realidade: “Um ponto de interrogação é que a figura que você usa para ilustrar este post, transmite uma mensagem como se a PNH estivesse "cortada ao meio" ou "meio apagada"… e existe um ditado que diz uma imagem vale mais que 1000 palavras”.

É este ser forçado a abandonar movimentos, é esta violência contra os vínculos afetivos, que nos faz a todos, consultores envolvidos e companheiros dos territórios, nos sentirmos cortados ao meio e meio apagados. Violência contra a transversalidade, contra a cogestão, contra a inseparabilidade ente clínica e política que nos faz vomitar, e como não fazê-lo, neste impropério teórico talvez, mas sentimento real: A MORTE DA PNH COMO POLÍTICA DE GOVERNO.

Morreu sim a política de governo ali, porque, tenho certeza, enquanto companheiros, os consultores não deixarão de acompanhar e estar de algum jeito nestes movimentos, como pessoas, mas não mais como representantes do MS. Se vive a PNH, portanto, qual foi o corte, qual foi o apagamento, qual foi a sensação de morte?

Por isso Ricardo Teixeira, por mais que considere importantíssimo seu post e a discussão que faz nele, que deve continuar, alerto apenas para que não é essa a discussão em questão.  Ela se torna um falso problema, porque não é saber se a PNH é ou não ainda Política de Governo, se ela está viva ou morta, se o novo arranjo permitirá ou não avanços substanciais o que está no cerne da problemática aberta como repúdio. Neste sentido é que a citação do Edu e Regina é impossível, porque, enquanto trabalhadores, não há esta parada para acompanhar o que se desenrolará, porque temos que lidar com um vácuo, sentido como morte, que nos incita a nos reinventarmos às nossas expensas até que o novo arranjo se decida e, mais uma vez, se abata sobre nós em pleno movimento. Aí, de novo, nosso movimento será forçado a ser interrompido, numa adequação a um melhor sempre imposto, sempre vindo de cima e do qual nunca sabemos bem o que é, porque não participamos destes fantásticos projetos ideados por intelectuais e nos oferecido como panaceias para aquilo que é sempre sofrer imposições do último melhor pensado.

Marias Josés, Raphaéis e Cleusas do Brasil afora (colocando a Cleusa agora como trabalhadora também), estou ouvindo vocês e, como vocês, ainda não vejo respostas colocadas para isto.

Neste ponto, para falar de forma não acadêmica, convidando os que acham que não sabem falar a falar como sabem, em relação ao fim ou não da PNH usarei uma analogia.

No Rio de Janeiro, dentro da comida de boteco, há uma iguaria apreciada: o famoso bolinho de bacalhau. De fato, o modo de fazer o bolinho varia muito, pode-se colocar mais ou menos batata, mais ou menos bacalhau, substituir batata por aipim (mandioca, macaxeira), temperá-lo de muitas maneiras inimagináveis, sem que ele deixe de ser bolinho de Bacalhau. A PNH, como bem salienta o Ricardo, veio o tempo todo rearranjando sua maneira de fazer o bolinho de bacalhau. Ela sempre foi diversa e diversificada, porque partia sempre daquilo que, humilde, aprendia com os territórios. Neste sentido, ela sempre foi camaleônica. De certa forma, podemos dizer que este novo arranjo pode ser entendido como outra maneira de fazer o bolinho de bacalhau. Mas cadê a conversa com o território?

No entanto, por questões várias, passando de financeiras a gosto pessoal, muitas vezes se substitui o bacalhau por merluza, que é outro peixe de sabor parecido. Neste caso, a iguaria continua sendo vendida como bolinho de bacalhau. Os acostumados, os experts em bolinho de bacalhau, podem até gostar do bolinho de merluza, mas sabem e muitas vezes protestam quando tentam passar bolinho de merluza como se fosse de bacalhau.

A quantidade de bacalhau em um bolinho pode variar muito, pode mesmo ser misturada com a merluza, por exemplo, mas ele só será realmente bolinho de bacalhau se houver um mínimo de bacalhau nele.

Nós nos últimos tempos da PNH, em seus velhos arranjos, viemos tentando assegurar um mínimo de bacalhau no bolinho. Para alguns, este mínimo era mínimo demais, quase um fiapo de bacalhau, se fiapo. Para outros, este mínimo era suficiente. Assim, uns ficaram e compraram o bolinho como sendo de bacalhau; outros saíram, porque consideraram que não havia bacalhau suficiente e que seria inútil esperar que, com o tempo, um bolinho de merluza pudesse ser bolinho de bacalhau.

O favor que a Cleusa nos prestou, assim penso, foi o de denunciar que o bolinho de bacalhau estava sofrendo profundas transformações não somente em seus arranjos de fazê-lo, mas em sua substância primeira: o bacalhau.
Nada contra bolinhos de merluza, mas temos que ser honestos e dizer que ele está sendo transformado ou misturado a outras coisas que não é mais bacalhau.

Assim, termino este post, já gigante, apenas para dizer que independente de nossas considerações teóricas a respeito da PNH, da política de governo e outras mais, importantes sem dúvidas, elas neste momento podem soar para os territórios como ‘masturbação mental’ de intelectuais, quando o que eles gritam é outra coisa bem mais perturbadora.

Por que o apoio do MS foi retirado aos seus movimentos em marcha, considerados potentes por eles? Em que o apoio aos serviços e aos territórios singulares poderia atrapalhar ou prejudicar a regionalização pretendida? Por que acabar com aquilo que eles consideram bom em nome de um ótimo futuro e incerto? Por que vínculos afetivos corresponsáveis e cogestivos de quem milita por um SUS que dá certo, de repente, foram desconsiderados e vistos como não mais estratégicos?

Estas questões, não teóricas, mas feridas na carne dos apoiadores dos territórios, eu não vi ninguém responder.

E assim, utilizando o mesmo texto do Edu Passos e da Regina Benevides, destacaria outro ponto brilhantemente colocado:

"Garantir o "caráter constituinte" do SUS, impõe que possamos identificar os problemas contemporâneos que se dão na relação entre Estado e as políticas públicas. É esta relação que queremos problematizar neste momento que o projeto de uma Política Nacional de Humanização retoma o que está na base da reforma da saúde do porte daquela que resultou na criação do SUS”. Problema semelhante ao atual,como vejo.

Penso que é esta relação que a voz da política pública questiona e, mais que questionar, repudia. É esta relação que está sendo sentida como cortada, apagada e, no limite, morta.

Não a subestimemos, não passemos por cima dela, porque, querendo ou não, esta revinculação é necessária para o estabelecimento da confiança. Ela só se faz, a meu ver, com conversa sincera, transparente, jogo aberto e limpo. E conversa, digamos bem, qualificada, sem bate bocas, sem reativismo e contra-reativismo, mas na afirmação das paixões alegres.

Acredito que a RHS tem esta vocação e é espaço aberto para isto, como Máquina Expressiva do SUS, como sempre a nomeei. Enquanto esta máquina democrática/bolinho de bacalhau não for substituída por um bolinho de sardinha enlatada, presto minhas homenagens à RHS e aos seus editores, em quem confio, além de admirar.

É fundamental esta retomada de confiança com os territórios para os futuros trabalhos da SAS/MS, para a nova PNH seja lá como se estruture e se arranje daqui para frente, após ter sido dissolvida pelo coletivo anterior. Porque, não esqueçamos, são estes mesmos protagonistas com os quais terão que contar para efetivar o novo arranjo de apoio descentralizado.

A perspectiva de um novo abriu um fosso nas ações em movimento, deserdou os movimentos daqueles em quem confiavam, criando uma sensação de que seus movimentos já não servem para mais nada. Uma sensação de descaso, desfiliação e de orfandade que, se não cuidarmos agora, certamente aparecerá como obstáculo mais a frente. A marcha das Margaridas estão aí para demonstrar o que pode os violentados.

Há um pensamento, acho que do Jung, que diz: “o lixo que colocamos no sótão da casa tem a estranha mania de aparecer na porta da frente”. Portanto, cuidemos e tratemos do nosso lixo. Não fujamos aos conflitos. Procuremos estar atentos para não dissimulá-los, não por cinismo ou por falsidade, mas porque as questões devem ser respondidas dentro da realidade colocada por aqueles que a formulam, não pela realidade que está em nossas cabeças.

No mais, não me oponho aos projetos do MS, não me oponho a nova PNH, milito pelo SUS e neste momento em que ele sofre profundos ataques, acho que nos dividirmos e nos enfraquecermos não nos potencializa. Mas a militância precisa de certa confiança, porque, ao final e ao cabo, não lutamos por qualquer SUS, não lutamos por qualquer coisa. Não vale tudo, como bem dizia Regina Benevides.

Ou construímos juntos ou juntos nos destruiremos favorecendo os que querem destruir.

Abraços e até breve.

Miguel Maia