Quando a Morte Abre Estradas

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A morte é um evento quase sempre marcante. Ela expressa rupturas, muitas vezes abruptas. Mas existem mortes às quais podemos estar mais preparados. Por exemplo, quando morrem pessoas muito idosas, apesar de nos sentirmos tristes, a elaboração mais rápida a ser feita expressa o sentido de que aquela pessoa viveu muitos anos e teve oportunidades de realizar sonhos e projetos. Morrer velho tornou-se algo natural, embora historicamente o adensamento de populações idosas seja um fato recente.

Mas e quando morrem crianças? Diferente do passado onde a morte infantil tinha muita visibilidade (a saúde pública precária e ausência de maior leque de recursos terapêuticos produzia taxas de mortalidade infantil muito mais altas do que agora), hoje a morte de crianças está "escondida" nas enfermarias pediátricas ou nas tragédias desenhadas pela violência urbana nos bairros periféricos.

Junta-se a isso a crescente laicização da sociedade e elaborações que afirmavam que Deus buscava seus eleitos mais cedo para serem anjos no céu acabam perdendo força explicativa. É como se uma vulgarização da filosofia existencialista afirmasse que cada um de nós somos responsáveis pela morte de uma criança. Isso agudiza sentimentos de culpa nos adultos, mesmo a distância.

A noção de infância instaurada no sec. XVIII seccionou o universo da criança do universo do adulto. Estruturou a noção de vulnerabilidade infantil. Instaurou saberes médicos como a pediatria e depois a hebiatria. E talvez o mais forte. Com base nessa visão de infância, somos psicologicamente preparados para cuidar de crianças.

A imagem de crianças mortas muda os destinos dos processos políticos. Nos últimos dias observamos na TV e na internet o corpo sem vida do garoto Aylan de três anos numa praia da Turquia. Ele fugia junto com seus pais da barbárie da guerra da Siria. Nesse instante horrendo, era impossível não pensar na dor do pai daquela criança e de que ela poderia ser nosso filho. Não queremos morte de crianças. Não aceitamos morte de crianças. Nos sentimos responsáveis pela morte de crianças.

E sem que Aylan pudesse imaginar, sem que seu pai imobilizado pela perda da família inteira afogada no mar pudesse prever, a imagem desalentadora de Aylan morto feriu profundamente o etnocentrismo, colocou contra a parede a ideologia de que a comunidade europeia é fundada em valores humanísticos.

Ninguém quer assumir a responsabilidade pelo cadáver de uma criança de três anos afogada numa praia da Turquia. Barreiras são quebradas, trens ficam lotados, estradas são desobstruídas dos arames farpados e o preconceito contra muçulmanos é momentaneamente aplacado. Nas contas de uma matemática perversa poderia-se afirmar que teria valido a pena a morte de Aylan pois com ela milhares de outras vidas poderão ser salvas. Mas quando penso que ele poderia ser meu filho, um gosto azedo de vazio toma conta da minha alma e a vontade que dá é de morrer junto.

Nesse momento milhares de Aylans estão navegando rumo ao novo Império Romano. São novos "bárbaros" fugindo da barbárie e implorando reconhecimento de sua humanidade apesar da "língua enrolada" e dos olhos de formato "estranho" ou de hábitos e costumes algumas vezes rotulados como "bizarros". Querem abrigo, querem reencontrar a perspectiva de um futuro, querem o sagrado direito de sonhar.

Não quero cometer o atrevimento de dizer que não existe nada depois dessa vida. Eu também sonho. E os sonhos atrelados a morte exigem sua negação. Assim, espero que Aylan tenha assumido suas novas funções de anjo da guarda e que ele possa ajudar a zelar pelas outras crianças que estão atravessando matas, rios, estradas íngremes e mares. Mas também imploro que os homens não deixem tudo para os anjos. Suas asas são muito frágeis.