Narrativas de vida experimentadas durante a gravação do Video da Mostra SUS que da Certo – Instituto Dona Lindu

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Sentada aqui na praça em frente ao Teatro Amazonas, fui picada por uma formiga. Mas as formigas daqui só podem ser muito fortes porque senti uma dor danada. Acho que nada por aqui no norte é leve. A chuva quando vem, vem "de com força ", arranca árvore pela raiz (árvore grande, viu? ) e destelha casa, o rio sobe rapidamente e leva o que tiver pela frente, o vento não sopra ele urra. Urrar é fazer um barulho dos grandes. Assim como o vento, a chuva, a formiga… o povo também é forte. Numa dessas minhas idas e vindas, em virtude do meu trabalho nos Estados do norte – aliás, uma das melhores coisas que acontece é conhecer e conversar com as pessoas, além é claro, da paisagem da mata – conheci uma senhora de sessenta e tantos anos, indígena, do povo Dessano. Ela fala português, mas com uma certa dificuldade. Gosto muito de conversar, essa minha quedinha por ouvir narrativas vem desde criança quando meu vô e meus tios, na boca da noite, faziam rodas na frente da casa da roça para contar seus causos caçador, e diga-se de passagem, esses causos sempre foram para mim histórias, nunca estórias. Inclusive agorinha mesmo seu Raimundo me viu sentada no banco da praça escrevendo esse texto, se sentou do meu lado pedindo desculpas porque estava cansado, seus setenta anos já lhe pesa nas costas. Se sentando, perguntou: "Desculpe sá menina, posso me sentar? Eu disse que sim, cruzei as pernas, coloquei a mão no queixo e já me pus a ouvir sobre sua vida, e a perguntar, claro! Mas esse bate-papo eu conto outra hora. Voltando a história da índia (que tem nome em português e em Dessano), fiquei impressionada com a força daquela mulher que pariu oito filhos, todos sozinha, de parto normal. Ela me dizia que não escolheu o marido, quem o escolheu foi o pai. Só conheceu o consorte – e olha que ele teve muita sorte mesmo de ter uma mulher daquelas como companheira – no dia do casamento. Do primeiro filho nem sabia que estava grávida, ficou sabendo no dia de parir. E quando sentiu as dores do parto saiu, instintivamente, para o mato, colocou um pano no chão e o bebê nasceu, ali mesmo ela cortou o cordão umbilical e o enterrou. Mais tarde foi para a aldeia limpar o bebê. Só depois disso a mãe ensinou-lhe os cuidados com a criança. Todos os seus oito filhos cresceram saudáveis. Ela já brigou, de facão empunhado, contra madeireiros para proteger suas terras. Nessa labuta protegeu suas crias dos bichos da mata e do bicho "homem branco". Hoje, vive numa comunidade indígena junto com outras etnias. Tira o sustento da terra, do artesanato e quando chegam os turistas cobra pra mostrar seu canto. Canta, em Dessano, uma música linda e melodiosa que conta sua história. Coisa tirada de sua própria cabeça foi o que ela me respondeu quando lhe perguntei de quem era a música. O canto era usado, conforme ela mesma me disse, para atrair pessoas boas para perto dela. Ao serem atraídas as pessoas lhe ofereciam frutas, enfeites e mais um tanto de outros presentes… Pra mim aquela senhora com marcas do tempo no corpo, de pele vermelha, cabelos lisos e pretos mais me parece uma sereia . Que pena que não sabemos cantar como ela!
Essa e mais tantas outras histórias eu experimentei nas gravações de um vídeo onde mostra um SUS que dá certo e, também, nas ações de saúde que desenvolvo pelo norte em virtude de meu trabalho como apoiadora do Ministério da Saúde para a Política Nacional de Humanização. Nessas andanças vejo e ouço histórias de trabalhadores, usuários e gestores que  juntos produzem saúde para uma população, que assim como essa mulher indígena  e tantas outras mulheres e homens, constroem um SUS que está para além do asfalto das grandes cidades. Certamente fazendo um SUS que dá muito certo e que se contrapõe ao que a mídia insiste em nós mostrar.
Imagens da gravação do vídeo da Mostra o SUS que da certo, Instituto D. Lindu.