Ubuntodos contra a escravidão (em todas as suas formas)

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Luiz Gama, advogado que atuou nos tribunais em defesa de escravos que lutavam por liberdade, mesmo sem poder se inscrever na Ordem dos Advogados do Brasil por ser negro, e que no dia 03/11/15, após 133 anos de sua morte, foi oficialmente inscrito nos quadros da advocacia nacional através do reconhecimento pelo Conselho Federal da OAB (https://www.revistaforum.com.br/quilombo/2015/10/28/um-evento-historico-homenagem-luiz-gama/)

 

Quando o desafio "ubuntu" (https://redehumanizasus.net/92967-ubuntodos-por-um) foi lançado por Pablo Dias Fortes aqui na RHS para que cada pessoa escrevesse um post em apoio a alguém que sofreu uma injustiça, como forma de nos reconhecermos como parte de um todo maior que cada um individualmente, pensei nas pessoas com diabetes que vem sofrendo a descontinuidade do fornecimento de medicamentos e insumos. Especialmente em uma amiga que, quando nos conhecemos, dizia que seu organismo não sabia esperar pela Justiça brasileira (https://deboraligieri.blogspot.com.br/2013/10/do-lado-de-ca.html), e que não conseguiu continuar o tratamento com bomba de insulina porque o Poder Judiciário do Maranhão faz vista grossa para o descumprimento de uma ordem judicial que deveria ter sido efetivada há mais de um ano pela Secretaria de Saúde local.

Mas aí a Comissão de Constituição, Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados considerou constitucional o Projeto de Lei 5069/2013 (https://redehumanizasus.net/92499-riscos-e-impactos-negativos-da-aprovacao-do-pl-506913-para-a-vida-das-mulheres-e-meninas-brasileiras) que, entre outras restrições ao atendimento no SUS para mulheres vítimas de estupro, só considera violência sexual os casos que resultam em danos físicos e psicológicos. Então pensei nas atuais "fogueiras e os métodos de violentação do corpo feminino" (https://infoativodefnet.blogspot.com.br/2011/11/o-martelo-nas-bruxas-como-queimar-hoje.html), cuja exploração pelo sistema machista e patriarcal se constitui em odiosa forma de geração de lucros (https://redehumanizasus.net/82578-a-insustentavel-leveza-do-ser-mulher-na-tv-brasileira-um-problema-de-saude-publica-feminina). Pensei em Simone de Beauvoir, que recentemente foi vítima de uma moção de repúdio de vereadores de Campinas após ter sido citada numa questão do ENEM (https://www.pragmatismopolitico.com.br/2015/10/vereadores-de-campinas-aprovam-mocao-de-repudio-a-simone-de-beauvoir.html). Pensei em Dilma Roussef e na recusa da grande mídia de chamá-la "Presidenta", afirmando não existir a flexão de gênero, sem perceber que, de fato, o que não existe é a aceitação de uma mulher no cargo maior do Executivo brasileiro (nunca se usou "presidenta" porque essa é a primeira vez que temos uma).

Então no domingo tive uma conversa com meu companheiro Patrício sobre a capacidade de transformar momentos ruins em experiências positivas na vida, como forma de sobrevivência, falando especificamente sobre experiências de racismo. E daí resolvi trazer o meu "ubuntu" para me solidarizar com as pessoas que sempre tiveram sua cidadania rebaixada* no Brasil, sujeitos da história que motiva as lutas do dia 20 de novembro, único feriado questionado no país: os negros e negras que foram escravizados e escravizadas, e que até hoje sofrem os efeitos da nova escravidão, a desigualdade de direitos e oportunidades para viver uma vida melhor.

Na semana passada o site Saúde Popular destacou a maior frequência de morte materna entre mulheres negras; maior risco de morte por causa externa, como homicídio; além de menor acesso a exames clínicos, conforme pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), de 2006. Dados do Ministério da Saúde apontam que, em 2011, a taxa de mortalidade materna por 100 mil pessoas era de 68,8 para mulheres negras e de 50,6 para mulheres brancas. Além disso, os homicídios aparecem como segunda causa de morte mais frequente entre a população negra, enquanto na população branca, o indicador aparece em quinto lugar (https://saude-popular.org/?p=1690).

Em junho a Agência Brasil havia também destacado que em 2012 negros foram presos uma vez e meia a mais do que brancos. Naquele ano, para cada grupo de 100 mil habitantes brancos havia 191 brancos encarcerados, enquanto que para cada grupo de 100 mil habitantes negros havia 292 presos, conforme dados do Mapa do Encarceramento: os Jovens do Brasil, da Secretaria-Geral da Presidência da República (https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2015-06/negros-foram-presos-15-vezes-mais-que-brancos-em-2012-embargo-4a-feira).

Em 2014 estudo do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) revelou que os impostos punem mais os negros e as mulheres em relação aos brancos e aos homens (https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2014-09/sistema-tributario-brasileiro-onera-mais-negros-e-mulheres-mostra-estudo). Há muitos relatos da exploração do corpo feminino negro, e violações e exclusões na área de saúde  (https://populacaonegraesaude.blogspot.com.br/2015/07/a-carne-mais-barata-do-mercado-corpo.html). E poderíamos retroceder mais no tempo, sendo, no entanto, desnecessário para perceber como a população negra sofreu e sofre injustiças no Brasil.

Pensei nas situações de racismo (sobre)vividas pelo meu companheiro (https://redehumanizasus.net/85595-o-racismo-enquanto-um-problema-ignorado-pela-saude-no-brasil) e por todas as pessoas negras, pensei em uma amiga que, trabalhando no Ministério Público de São Paulo, foi obrigada a pedir transferência de setor após um longo período sofrendo assédios racistas de sua chefe.  Pensei em Taís Araújo e Maju, vítimas de racismo nas redes sociais (https://odia.ig.com.br/diversao/celebridades/2015-11-02/apos-racismo-tais-araujo-agradece-apoio-e-maju-coutinho-defende-a-atriz.html). E em atores e atrizes impedidos de interpretar papeis considerados inadequados para pessoas negras, como mostra o filme "A negação do Brasil" de Joel Zito Araújo (https://vimeo.com/95471812).

Minha solidariedade e minha força na luta contra todas as formas de escravidão!

Finalizo esse texto deixando o video da mesa de estudos e debates Boaventura de Sousa Santos e movimentos sociais, realizada pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Escola de Governo, Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM, Projeto ALICE e PUC-SP. Mais do que abordar injustiças – contra mulheres, contra pobres, contra negros e negras (com uma fala contundente da jornalista Marilene Felinto sobre a violência da mídia), contra índios – mostra que a participação social é uma forma de resistir e de lutar pela cidadania compartilhada, como um direito afeto à democracia.

 

 

Observação: agradeço aos amigos Pedro Aguerre, Gustavo Nunes de Oliveira, e Jorge Márcio Andrade pelo compartilhamento de conteúdos no facebook que me ajudaram a construir este texto.

* Expressão usada por Luiz Kohara, do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, durante a mesa de debates, para se referir à situação de desigualdade de direitos e de oportunidades que importa em redução de acesso a direitos.