Sobre as origens da corrupção e os custos de combatê-la.

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Foto: Marcelo De Francesch

O empreendimento racional e cognitivo, tanto do ponto de vista individual, quanto coletivo consiste no reiterado esforço para negar o óbvio. Se existem muitas vantagens de sermos autoconscientes (afinal parece ser isso que torna nossa frágil e recente espécie a dominante sobre a terra) certamente isso não decorre sem custo.

Saber que somos seres finitos é um conhecimento que contrasta com o desejo inato de existirmos pelo máximo de tempo que a sorte e a virtude (combinadas ou não) tornarem possíveis. Daí decorrem os mitos, a religião e a moral. Combinadas elas fornecem um conjunto de racionalizações para as estratégias que escolhemos na busca da vida melhor e mais longa possível. Ou seja, o justo é o nosso mais lúcido interesse, assim como a ética é o curso de ação menos doloroso para nós e para a sociedade.

Essa equação apenas ocasionalmente é de resultado satisfatório para todos. Em geral há danos proporcionais aos benefícios de qualquer ação humana. E, não raramente, ocorrem dilemas em que o certo e o certo colidem. Em parte, esse é o significado da tragédia.

Há inúmeros tipos de flagelos que podem tornar a vida um fardo do qual podemos desejar nos aliviar: – Dores físicas ou emocionais dilacerantes; – Profundas desilusões; – Perdas irreparáveis (materiais ou simbólicas); – A privação de modos de vida profundamente arraigados ou valorizados; E a crença profunda em uma existência após a morte (como nos surtos de sacrifício dos primeiros cristãos que entoavam orações e cantos, enquanto eram devorados por leões, juntamente com seus filhos e entes amados). Todos esses exemplos são um registro contundente de que um sentido para a vida supera em muito o instinto de sobrevivência.

Entretanto, em geral, se a vida parecer estar de acordo com o consenso médio de qualidade desejável, vamos querer viver pelo maior tempo possível.

O problema é que a diversidade de vidas razoáveis, ou seja, com sentido são incontáveis mesmo no interior de um único sistema de signos (o interior do vasto modo de vida vida de uma única cultura, por exemplo).

Vivemos em um mundo globalizado, e conectado em rede. Então, consideremos quantas culturas diferentes, com seus mitos e crenças peculiares, e igualmente diversas, existem em nosso planeta.

A corrupção decorre das contradições entre lealdades diversas que emergem desse caldo caótico de modos de vida, sistemas de habitus, para usar o conceito de Pierre Bourdieu, com seus capitais simbólicos específicos, que se entre chocam no ambiente social. Narco cultura, facções criminosas, gangues, máfias, quadrilhas de políticos e empresários são tão comuns como quaisquer outros agrupamentos em torno de modos de vida comuns.

Atualmente, podemos fazer parte de redes de relações entre grupos, estamentos, classes, culturas, faixas etárias, estilos, tribos de vários tipos simultaneamente. Vale para um jovem de periferia inserido em uma rede de pertencimento de facções criminosas, ainda que ele pessoalmente não cometa infrações ilegais, mas aos quais está ligado por laços familiares e/ou de lealdade, que participa dos cultos de uma crença religiosa e da “galera” ligada ao estilo musical de sua preferência.

Mas também vale para o líder comunitário, praticante dos cultos de uma outra religião, que é filiado a um partido político, que será eleito, e ocasionalmente estará ligado a redes de financiamento ilegal de campanhas eleitorais. Esse mesmo líder, por sua afiliação ideológica à esquerda, ou à direita, poderá receber honrarias nacionais ou internacionais, de acordo com o critério de sua contribuição para a causa de sua ideológia ou credo religioso, ou mesmo, por ambas as razões.

Por isso, uma avaliação da “operação mãos limpas” tupiniquim deve levar em conta os custos e consequências semelhantes as da operação mãos limpas italiana. Todas as iniciativas coercitivas contra a corrupção e o crime organizado em âmbito mundial tem apresentado resultados ambíguos. Na prática elas tem consequências que incluem ganhos e perdas.

A corrupção, no Brasil, pode estar tramada desde o interior do tecido social, como parece ser o caso da Colômbia, México, Venezuela, Rússia, China, Itália e EUA. De modo que, invariavelmente, o combate mais eficiente tem o custo da escalada de violência como reação as sanções.

Nos EUA a corrupção e o crime são combatidos com encarceramento massivo em todo o país e pena de morte em alguns Estados. Parte da corrupção política (como atividades de lobistas e o financiamento de campanhas por interesses das grandes corporações) é simplesmente legalizada. Outra parte é exportada, como uma deletéria estratégia geopolítica, para os Estados falidos que a máquina de guerra ianque cria ou estimula.

Na Rússia, as máfias estabelecem acordos de dominação. Uma espécie de feudalismo encastelado no interior das instituições do Estado de direito.

Na America Latina hispânica, a demanda por cocaína e anfetaminas nos EUA, parece movimentar economias profundamente desiguais. A pobreza, miséria e anomia social estabelecem o pertencimento a modos coletivos de ser que se articulam com a economia informal e essa com o crime organizado.

Na Itália os políticos responderam a ofensiva do Judiciário aprovando leis que blindam os corruptos e a corrupção. Crise econômica, Berlusconi e outros efeitos danosos também foram contabilizadas entre os efeitos indesejáveis da limpeza moralista que se pretendia fazer naquele país.

Em geral, o ressurgimento de extremismos como fascismos, fundamentalismos e arbitrariedades do Estado invadindo a privacidade e os direitos individuais vem se acentuando após o 11 de setembro de 2001.

Globalmente ainda vivemos sob uma crença na universalidade do modo vida ocidental. O projeto de uma democracia global é uma utopia, recorrente em mentes liberais e até conservadoras, segundo o filósofo inglês John Gray.

No Brasil, parece que a condenação de Lula não se dará sem a exaltação fascista que pretende estigmatizar todo o pensamento de esquerda, e liberal (se lembrarmos a briga entre Olavo de Carvalho e Rodrigo Constantino). Ora, certamente o sentimento de que a cruzada do Ministério Público e Judiciário avançará sobre FHC, Renan Calheiros, Cunha, Aécio e tantos outros, faz sentido e deve ser considerado nos cálculos daqueles que pretendem apenas a mudança no comando da locomotiva da máquina pública.

Então, provavelmemte veremos no Brasil, exatamete como na Itália, os políticos, congressistas em especial, reagindo com leis para se protegerem das investidas da Polícia Federal, Ministério Público e Judiciário.

As grandes empresas de mídia vivem uma crise de subsistência sem precedentes e devem se alinhar a qualquer hegemonia que venha a suceder o governo de Dilma, se, e quando ela cair, na expectativa de auferirem financiamento através de publicidade estatal.

Resta saber como a maioria mais pobre da população – que entende muito bem a lógica da economia informal de subsistência; das leis do Estado paralelo; e dos subsídios de renda mínima que têm incrementado seu padrão de consumo – irá reagir.

Por enquanto eles só observam com a sabedoria de que os custos dos arroubos moralistas e das manipulações podem custar tanto, quanto os belos sonhos da “Primavera Árabe” custaram ao povo sírio.

As pessoas sabem da verdade sobre a vida e da reiterada necessidade niilista de negar essa verdade inconveniente.

O curso biológico dos corpos e as explosões sensíveis que caracterizam a existência são equânimes e afetam a todos nós.

Toda a desigualdade social decorre da necessidade coletiva de negar essa obviedade. A corrupção, o crime e o moralismo são facetas desse impulso negacionista.