SOBRE INGRATIDÃO PARA COM NOSSOS IDOSOS

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Lembro do intenso fluxo de pessoas significativas que chegavam e saiam de certa residência, sempre em finais de semana e feriados prolongados. Situada na Rua Barata Ribeiro, em Copacabana, zona sul da Cidade do Rio de Janeiro, onde residia Dona Maria da Silva e seu esposo, casal de idosos com mais de 70 anos. Compartilhávamos regras e despesas do mesmo condomínio, muito próximo da mais famosa praia brasileira, isso, nos anos das décadas de 1980 e 1990, além de vínculo de parentesco de terceiro grau com o idoso.

Maioria dos frequentadores eram familiares do seu esposo, amigos do prédio, gente que chegava a todo instante para se fartar nos almoços, lanches de tarde e jantares intermináveis. Imperava atmosfera festiva própria dos cenários familiares comuns nos seriados de televisão.

Comia-se e bebia-se muito bem, por isso, todos eram bastante frequentes, inclusive, partes tradicionalmente conflitantes em decorrência de casamentos desfeitos e substituições da titularidade matrimonial. Essas coisas de relacionamentos humanos mal resolvidos, mas, aparentemente toleráveis.

No caso da Dona Maria da Silva, imposta esposa titular do proprietário do imóvel, com o qual vivia há mais de 30 anos, mas, sem laços matrimoniais, digamos oficiais, por razões que não interessam agora. Muito receptiva, hospitaleira, dominava como poucas a arte culinária, e exagerava na qualidade do cardápio e produção dos muitos pratos que servia a cada refeição. Além disso, era tipo “pau pra toda obra”, sempre pronta e disponível para prestar qualquer ajuda para quem dela necessitasse.

Dava seu jeito, e conseguia marcação de cirurgias, acompanhamento em consultas médicas, fazia curativos, aplicava injeções, entre outros fazeres de enfermeira de vocação, bem como soluções para velhas pendências dos condôminos na previdência social, etc. Costumava comprar garrafas de vinhos para presentear alguém que lhe facilitasse em suas incursões em benefício de terceiros, cujos volumes despertavam curiosidades dos vizinhos, muitos deles maldosos e frustrados por não receber convite para seus banquetes, a rotulavam alcoólatra de carteirinha. 

Muito espirituosa, fingia não saber do que se conversava nos bastidores do condomínio, e continuava de cabeça erguida, ocupando-se do servir aos outros. Com o passar dos anos ela e o esposo ficavam cada vez mais frágeis, ele partiu antes, deixando-a acompanhada dos seus aparelhos de jantar, talheres, taças, e demais utensílios que compunham os habituais cenários dos fartos banquetes, além de fortes lembranças de tempos que não voltam.

Como o trem da vida me fez descer em outra estação, nem por isso, o vínculo criado entre nós foi desfeito pela distância geográfica. Mantínhamos contatos frequentes. Meio sem chão com a morte do esposo, Dona Maria da Silva resistia a ideia de mudar a disposição dos móveis, supressão dos tapetes, enfim, todo que não se recomenda para habitação de idoso com déficit visual e equilíbrio postural comprometido. Com isso, sua pele muito clara estampava hematomas resultantes de uma ou outra colisão do seu corpo com extremidades dos móveis. Defendia-se afirmando gostar das suas coisas como sempre estiveram, sem aceitar que nada nos pertence, todas as coisas apenas estão conosco de empréstimo, de passagem.

Hoje, trancafiada em unidade de longa permanência para idosos, nova denominação para os tradicionais asilos, chora e clama por informações sobre suas bandejas, pratarias, cristais, porcelanas, sabe-se lá onde e com quem estão. Entre momentos de lucidez e confusão mental decorrente da Síndrome Demencial – Alzheimer, faz parte de uma perversa lista de Donas Marias da Silva, que não para de crescer. Diante da atual realidade sobre como os mais novos tratam quem já não mais detém vontade própria, quem se aventura afirmar que terá uma velhice digna, vivendo onde se deseja, com quem gostaria, em paz e harmonia?

Wiliam Machado