A franqueza de Jacques Derrida (ou simplesmente: da palavra “acolhimento”)

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Filósofo nascido na Argélia, então uma simples colônia francesa, Jacques Derrida (1930-2004) foi uma figura que sempre desafiou o pensamento à experiência de seus próprios limites. Analisando o discurso filosófico dominante sob o que acabou sendo, por esse mesmo motivo, também chamado de “desconstrução”, sua argúcia consistia exatamente em apontar, para o desconforto de muitos, a condição potencialmente equívoca de qualquer significado. Em oposição à ideia de que a linguagem seria, portanto, um território absolutamente seguro, imune a processos de incerteza e instabilidade, Derrida demonstrou justamente que, sem tal característica, era o próprio fenômeno da significação que se tornaria impensável. A condição potencialmente equívoca do significado teria a ver, pois, com essa estrutural abertura (carência?) da linguagem, com esse eterno adiamento do sentido em cujo rastro, porém, será sempre possível alguma prática filosófica… Eis aí a profunda generosidade da chamada “desconstrução”. 

Já li alguns de seus comentadores dizerem que todo esse “malabarismo” teórico (no fundo, mal sabem o quanto haveria nisso de elogio) se deve a aspectos da própria biografia de Derrida. Nascido, como já foi dito, na então colônia francesa da Argélia, desde cedo experimentou a fugacidade de toda e qualquer classificação, a interdição filosófica de centros e essências. Alfabetizado em francês, língua nativa do colonizador, foi com ela que teve de aprender, por exemplo, a interpretar o episódio de sua própria expulsão da escola (de origem judaica, Derrida também foi alvo, quando criança, da repressão anti-semita que havia reduzido de 14 para 7% as cotas de judeus na escola). Terrivelmente paradoxal essa tarefa: traduzir, no idioma proclamador das Luzes, tamanha fratura nessa mesma história.      

A seguir, um pouco mais da profunda generosidade desse filósofo franco-argelino (e aqui me remeto imediatamente ao trocadilho do título), lembrando-nos, sempre como alerta, da potencial equivocidade da própria palavra “acolhimento”. Sobretudo agora que o nosso sistema de saúde avança na consolidação de princípios e diretrizes, territorializando valores e formas de vida, não custa lembrar também que toda aposta comporta riscos. Com a palavra, Jacques Derrida:

“(…) Para ter a audácia de dizer boas-vindas, insinua-se talvez que se está na própria casa, que se sabe o que isto quer dizer, estar em casa, e que em casa se recebe, convida ou oferece hospitalidade, apropriando-se assim de um lugar para acolher o outro, ou pior ainda, acolhendo aí o outro para apropriar-se de um lugar e falar então a linguagem da hospitalidade (…)” (DERRIDA, Jacques. A palavra Acolhimento. In: — Adeus a Emmanuel Lévinas. Ed. Perspectiva: SP. pp. 33-34, 2004)