Idealismo, obscenidade, política e moralismo

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A exposição, em imagens de alta definição, de dois tipos de obscenidade – as do cotidiano da política e as das entranhas da fisiologia humana – permite um olhar sobre a maneira como suportamos a percepção e a narrativa do que chamamos de realidade. 

O fenômeno da interação entre manifestações de massa e redes sociais começou com a primavera árabe em 2011, chegou ao Brasil em 2013. Foi uma onda que inaugurou no campo da política e das manifestações de massa, o fenômeno da hiperconexão em redes sociais e os protestos de rua. Essa ubiquidade da interação começou com a difusão da internet  nos anos 90, se intensificou a partir de 2005 e se acelerou a partir da difusão dos Smarphones.

O tecido do real sofreu uma espécie de inflação, se expandiu e suas fronteiras se tornaram porosas. Os eventos disponíveis, até então, para as análises de especialistas, passaram a estar acessíveis para o as massas e seu onírico senso comum. O véu que separa o palco das encenações de sentido, dos bastidores onde as idealizações são forjadas, se dissipou como se esvanece uma bruma ao amanhecer.

hiperconectividade, conjugada com a produção de imagens do real, que parecem ainda mais intensas do que a realidade, mudou radicalmente o ordenamento das interpretações e a produção de discursos com pretensão de verdade. A memória virtual, através de um congelamento dos eventos (em suportes que permitem, tanto a difusão, quanto a repetição ilimitada de uma vivência) é produtora de uma realidade intangível, porém muito concreta. A execução de Saddam Hussein e o linchamento de Kadafi, as decapitações no oriente médio, nos presídios e nas periferias das cidades brasileiras, se somam a esse universo de imagens que ameaça o consenso idealizado a respeito do que seja nosso modo de ser, tanto individualmente, quanto coletivamente.

Entre uma constelação de imagens pornográficas, encenadas para a câmera por atores, surgem as imagens da coisa em si, do sexo real, realizado por pessoas comuns e veiculado para o acesso universal através da internet. Na pornografia o protagonista é o expectador já que os atores, enquanto atores, são a personificação mais real dos personagens que interpretam. Ou seja, são o que interpretam ser. Nos videogames, no cinema, no teatro e na literatura a violência, o suspense e a tensão são, igualmente, potencializados. Mas é na difusão da imagem real do assassinato, da agressão, das imagens da violência, da tortura e da agonia em si mesmas, que nossos sentidos são afetados. Produzindo uma espécie de atordoamento que desorienta nossos referenciais implícitos e explícitos. Tudo é real, mas um real ampliado, um real que jamais foi observado e experimentado ao longo da história humana.

Os dispositivos, como Smarthphones ou tablets, e seus aplicativos, se tornaram apêndices, próteses sintéticas da memória e do aparato de produção de subjetividade humana. Nesse contexto, um vídeo em especial chamou minha atenção por ser um tipo extremo do que circula pelos bits de memória dos gadgets que usam.

Nele, aparece um homem com as calças arreadas, o tórax exposto. Ele está inerte, talvez em agonia. Seu rosto não aparece. A câmera se concentra num ferimento surreal, quase impensável. Há uma abertura de um palmo que expõem seu coração, a parte inferior dos pulmões. Inacreditavelmente as costelas não aparecem. O coração bate, o pulmão infla e desinfla, sofrida e regularmente.

É a imagem de uma agonia obscena por incontáveis razões. Primeiro, pode-se pensar em algum tipo de acidente raro. Mas uma contusão que produzisse as cenas do vídeo é muito improvável. Parece haver método na retirada das costelas do campo de visão, o corte é intencional e o fato de a vítima ser filmada parece quase pedagógico. Mesmo que fosse um acidente, o registro e a veiculação das imagens, seria de uma sordidez impronunciável. Porém, a impressão final é de que o homem foi filmado durante uma cirurgia. Mas não há legenda, não há texto nem advertência. Apenas as entranhas expostas constituem o discurso implícito da imagem.

Há registros de desmembramentos, afogamentos eviscerações e empalamentos feitos com a vítima ainda viva, desde tempos imemoriais. O ponto aqui é o fato de que você não está lendo ou escutando uma história macabra sobre esse tipo de crueldade. O caso é que a coisa em si, o evento real, pode ser revivido em cores muito vivas, com seus detalhes e sons, por qualquer pessoa. Não é uma cena que insinua, não é uma narrativa com recursos de computação gráfica. É a coisa em si e você, de qualquer modo, vê e interpreta o que vê como real.

O que pretendo é relacionar o fenômeno da imersão em realidade virtual, precedido por esse oceano de imagens realistas das coisas e dos fatos da vida, com a difusão dos escândalos de corrupção nas mídias tradicionais e nas redes sociais.  E disso, extrair elementos para pensarmos sobre a dicotomia entre moralidade e ética, entre realismo e idealismo entre a potência do corpo e as forças do espírito.

O fenômeno da espetacularização e criminalização da política é intenso no Brasil. Mas algo similar está acontecendo em todo o planeta. A eleição de Donald Trump, a queda da presidente da Coréia do Sul, os “ Panama Papers ,  são efeitos nessa ruptura na formação dos discursos que narram o mundo. Nesse sentido é que o termo pós-verdade surge com força: a possibilidade real de instituição de discursos de verdade, diversos e divergentes, mas com igual peso. Não é que a verdade não exista, mas sim o fato de que ela é passiva de incontáveis versões. Na verdade, a verdade pode se encarnar em qualquer forma ou modalidade de sua expressão. Como o sentido é produzido por nós, todo o significado que produzimos, tem sentido. O que falta ao sentido é uma autoridade QUE TRANSCENDA AOS FATOS.

Assim, o funcionamento orgânico, as vísceras expostas, são uma realidade permanente e sempre oculta de nossos olhares. Existem, mas em nosso idealismo, podem ser desconsideradas.

Nós imaginamos uma disjunção entre o todo e suas partes. E, em seguida, entendemos apenas alguns dos determinantes como essenciais e desconectados de seus contextos.  Idealizamos as relações de interdeterminação e percebemos o real como sendo o que imaginamos que deveria ser. O que é, portanto, sempre nos parece obsceno, excessivo e insuportável de se ver.

A seção do Congresso Nacional, em que os deputados federais decidiram pela instauração de processo de Impeachment de Dilma Rousseff em 2016, foi obscena por expor, num dia de lazer e descanso, durante várias horas, o processo político na sua faceta real e não idealizada. É como associar a imagem de um belo prato de camarão, com a imagem do processo de sua absorção em nosso aparelho digestivo.

O escalonamento desse processo de exposição do real ao olhar do senso comum não apenas prossegue, mas aprofunda-se. Dos áudios das conversas entre o ex-presidente Lula e de Dilma, chegamos as imagens das malas de dinheiro de Aécio e as gravações do presidente Temer. E não cessamos de exclamar: Extraordinário, impensável, fim do mundo!

Mas será mesmo que o alarido e a indignação geral são reações ao extraordinário dos fatos ou a sua medíocre banalidade? Sabemos de onde vêm as crianças, num sentido fisiológico, sabemos como são feitos os alimentos, como o gado é abatido, sabemos como vivemos e como morremos. Mas não queremos nem ver, nem pensar sobre isso.

O mesmo se dá com a corrupção na política. A corrupção é parte do mecanismo econômico. É um modo de produção de um tipo bem especifico de riqueza. Sabemos que a indignação que as imagens nos causam se deve justamente ao fato de sabermos que é assim que sempre agimos. O que nos horroriza é a luz sobre o obsceno. Mas porque é assim?

Minha hipótese é de que o idealismo, tomado como a forma que o mundo deveria ter, nos leva a desprezá-lo do modo como de fato é. Nietzsche nos alertou sobre esse impulso que nos leva a negar a vida em nome de uma construção ideal que não existe. Os humanos sempre souberam criar mundos que jamais existiram. O nosso é certamente um deles. Mas ao crermos que um único mundo ideal é o que deveria existir, simplesmente rebaixamos a vida a uma fração muito pequena do que ela pode, de fato, ser.

Ficamos presos num circulo de giz onde Aécio não pode ser Aécio, Temer não pode fazer o que faz, Lula é um psicopata por razões que bem pouco entendemos. O que nosso moralismo sabe não diz respeito a pluralidade de mundos que poderiam haver. Os moralistas só sabem de todos os mundos que não deveriam existir. Desse vazio imenso que suas perspectivas produzem eles intuem o contorno de um mundo ideal que ninguém conhece porque ninguém jamais esteve nele.

Não são os milhões pagos em comissão para que as empresas possam prosperar, (através de benefícios ilegais da estrutura estatal) que deveriam mobilizar nossas energias. Nossa potência de agir poderia ser melhor direcionada aos questionamento do significado da produção de riqueza em nosso mundo. Devemos pensar na forma em que poderíamos dispender os recursos fabulosos que acumulamos. Poderíamos tentar entender os tortuosos caminhos da construção de um mundo onde as civilizações podem existir. O que é nós conhecemos bem, porque é parte de nossa experiência básica de existir. O desafio reside no que poderemos vir a ser.

Mas não podemos abraçar, com responsabilidade, o pleno devir enquanto tratarmos o mundo real como uma obscenidade para a qual só podemos olhar pelo filtro das fantasias idealistas e de um moralismo covarde e rebaixado.