“A anemia falciforme é um retrato do racismo no Brasil”

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“A anemia falciforme é um retrato do racismo no Brasil”

Altair Lira, 49, deparou-se com a anemia falciforme há 17 anos, quando descobriu que  sua filha tinha a doença. “Precisei enfrentar duas agonias: a de pai e a de cidadão”, ele diz, enquanto caminha por um dos corredores da Universidade Federal da Bahia, onde hoje atua como professor do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências. Na época do diagnóstico da filha, Lira descobriu que não existiam políticas públicas para atender os portadores desse tipo de anemia, que é predominante na população negra. Decidiu  fundar, então, a Associação Baiana de Pessoas com Doenças Falciformes (Abadfal) e, posteriormente, a federação nacional (Fenafal). Ainda hoje, dois centros de referência e apoio para mais de 50 mil famílias afetadas pela doença. Antropólogo e pesquisador do programa Comunidade, Família e Saúde: Contextos, Trajetórias e Políticas Públicas, do Instituto de Saúde Coletiva, da Ufba, Lira, em suas palestras e em sala de aula, repete algo que aprendeu na prática. “A anemia falciforme é um retrato do racismo no Brasil. Entre o primeiro relato da doença e a primeira política pública se passou quase um século”, diz. “Isso não é um dado gratuito quando identificamos que a doença é predominante entre negros”. Nesta entrevista à Muito, Lira fala sobre a formação dos médicos brasileiros, a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, instituída como lei em 2009, e o racismo no Sistema Único de Saúde (SUS).

Uma das enfermidades mais comuns entre a população negra é a doença falciforme. A Bahia é o estado com a maior incidência deste tipo de anemia no Brasil. Como avalia o atendimento à população?

É curioso que a anemia falciforme não é uma desconhecida da mídia nem dos governos. É uma doença que aparece na mídia porque há uma pressão social para que apareça. Se dependesse do próprio sistema de saúde e da imprensa, não apareceria. Ainda assim, aparece. Quando você olha, numa linha do tempo, a qualidade da informação sobre a anemia falciforme, você nota que ela era uma informação muito vaga. Mas, lá por volta de 2000, 2001, quando o movimento negro começa a fazer pressão, a informação passa a contemplar mais detalhes e, sobretudo, detalhes sobre como as pessoas que portam a doença são atendidas. E esse foi um ganho, porque trouxe o paciente para o centro do debate. A Associação Baiana de Pessoas com Doenças Falciformes tem 17 anos. Antes dela, tínhamos um cenário de atuação quase inexistente. A associação começou a levantar dados. Na Bahia, por exemplo, a cada 650 nascidos, um tem anemia falciforme. É um caso de saúde pública. Em alguns municípios, como Cachoeira, é quase um nascido com anemia para cada 100. Então, não adianta pensar que um posto especializado em Salvador resolve o problema. Nós temos que pensar na pessoa que está em Xique-Xique, em Barreiras, em Cachoeira. Pensar numa rede de assistência. Hoje, nossa maior luta é trabalhar para uma política estadual integrada, que na prática não existe. Estamos lutando  para que os princípios do SUS sejam adotados e garantidos. É uma luta do movimento negro.

Por conta dessa mesma luta do movimento negro, fala-se, hoje, em racismo no SUS. Como o racismo se reflete no sistema de saúde brasileiro?

Vamos pensar num caso: uma garota negra dá entrada num hospital público para dar à luz. Os médicos não medem a pressão arterial dela nenhuma vez. A garota começa a ter convulsões por eclâmpsia, causada justamente por pressão alta, até que ela, enfim, é levada ao centro cirúrgico para uma cesariana. No procedimento, o útero é perfurado. Com hemorragia, ela é transferida para outro hospital e morre sem sequer ver o bebê. Não que os enfermeiros tenham deixado a garota morrer de forma proposital. Não é assim que o racismo na saúde acontece. Faltou informar a garota durante as consultas pré-natal sobre os riscos da pressão alta, já que a população negra sofre mais com esse problema. E uma jovem grávida tem risco ainda maior. Faltou medir a pressão durante o parto. Às vezes as pessoas não percebem que estão sendo racistas, mas o racismo está lá, operante. Quando chega a hora do negro, a ficha no SUS acaba. Se a gente pegar a anemia falciforme, por exemplo, vamos ver que esse racismo existe desde a origem da doença, vinculando-a à mestiçagem, como se a mestiçagem fosse algo ruim. A doença falciforme é o maior exemplo de racismo institucional. Ela foi descoberta em 1910 e, entre a descoberta e a primeira política pública, se passaram 95 anos. Nenhuma doença percorreu quase um século do seu relato para a sua primeira política pública. E eu não estou falando de uma doença isolada, raríssima. No SUS, o racismo acontece na portaria, na pauta das pesquisas, na sala do médico. Sobretudo na sala do médico. O médico não toca o corpo do negro.

A longa crise da saúde pública no país é, também, uma crise de formação dos médicos?

Sim. A universidade, como instituição, acaba reproduzindo essa ideia de que o racismo é do outro. Então, o outro precisa falar. O profissional que sai da universidade vai ouvir falar de racismo um dia. Mas por que eu não trago para a formação desse profissional essa discussão? Nas ciências sociais, a discussão sobre o racismo é muito antiga. No campo da saúde, essa discussão nem começou. Há uma lacuna imensa entre a realidade das salas de aula e a realidade em si. Um exemplo: muitos alunos passam quase a formação toda se debruçando sobre doenças cuja taxa de incidência é baixa no Brasil, ou cuja taxa de incidência só é alta no Sul do Brasil. Não que seja ruim estudar essas doenças, mas é ruim quando doenças prioritárias, tamanha a incidência na população, nem sequer são olhadas. No Recôncavo, há um surto de leishmaniose. No sertão baiano, casos e mais casos de doença de Chagas. Existe uma realidade que não entra na sala de aula.

A medida anunciada pelo governo federal, em 2013, exigindo do estudante de medicina atuação na rede pública de saúde por dois anos, minimiza o problema?

Acho importante que alunos tenham essa experiência prática ampliada. Acredito que estender esse rito de passagem, do estudante para o profissional, enquanto ainda não se está boicotado por questões do mercado de trabalho, pode dar mais segurança e ampliar a visão de mundo do próprio médico. Mas há uma condição muito importante para que essa mudança seja bem-sucedida. Todo o processo precisa estar ligado, de fato, a universidades e faculdades de medicina, que, por sua vez, possam se responsabilizar, com recursos suplementares do governo federal, por uma supervisão. Se isso não ocorrer, há o risco de ser apenas uma forma de se utilizar mão de obra barata para preencher lacunas do SUS.

Em 2009, foi instituída a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. Como anda o trabalho do governo nessa área?

Em 2006, essa política foi aprovada no Conselho Nacional de Saúde. Ela só foi aprovada na Comissão Intergestores Tripartite (CIT), composta por gestores de saúde do governo federal, estados e municípios, um ano depois. E só foi publicada no Diário Oficial em 2009. Veja o caminho tortuoso até se tornar lei. Mas, bem, antes com a lei do que sem ela. Hoje, municípios e estados são obrigados a pensar na saúde da população negra. No entanto, faz sete anos que a saúde do negro virou lei, e ela continua sendo ignorada. E quando falamos de saúde, não estamos falando somente de doenças, mas de acesso a saneamento básico, educação, alimentação, cultura, lazer. E quando nós estamos falando de população negra, estamos falando de comunidades ribeirinhas, quilombolas, marisqueiras, pescadores. Cada uma com sua especificidade no seu modo de viver.

O atual ministro da Saúde, Ricardo Barros (PP-PR), assim que assumiu, disse que, em algum momento, o país não conseguirá mais sustentar os direitos que a Constituição garante, como o acesso universal à saúde. Acredita na diminuição do tamanho dos SUS como uma solução?

O ministro apregoou a visão de mundo não só dele, mas de todos os grandes gestores públicos do país ao longo dos últimos anos. Essa visão de que o direito à saúde não cabe no orçamento, de que a Constituição de 1988 deve ser relativizada, é uma ideia das classes ricas no Brasil. Para o SUS ser efetivamente universal, público e integral, ele teria que ter base de financiamento que sustentasse isso. Todos os governos posteriores a 1988 não levaram às últimas consequências a garantia da estabilidade financeira do sistema. No Brasil, a maior parte da elite considera que quando um serviço público social funciona mal deve ser extinto. É uma intenção exterminadora que se sobrepõe à ideia de reforma e se manifesta de forma clara tanto no caso da previdência quanto da saúde. No caso da previdência, trata-se de um absurdo repetido à saciedade. No caso da saúde não há o mesmo ímpeto privatizante de outras áreas, mas sempre há implícita na classe dominante a ideia de que se não está funcionando, é melhor deixar os agentes privados operarem sozinhos: “Hospital público é assim mesmo, é melhor acabar e privatizar”. O SUS é um dos maiores sistemas públicos em operação no mundo, mas para assegurar a sua universalidade é essencial garantir uma fonte segura de financiamento.

No atual momento, usa-se como argumento a falta de recursos para justificar a dificuldade de financiamento…

Todos os anos, o governo federal gasta quase a metade do que arrecada para pagamento dos juros da dívida pública. Quase 45% de tudo que o governo federal arrecada e gasta não é para saúde, previdência, educação, é para pagamento dos juros, dos bancos. Se vamos falar de gasto público, precisamos falar sobre o verdadeiro ralo do dinheiro público. E, no Brasil, apesar de um quarto da população ser atendido pelo sistema privado, o segmento responde por metade dos gastos em saúde.

O atendimento humanizado e eficaz no SUS será alcançado se as pressões coletivas e organizadas continuarem?

Se formos aguardar pelos governos, seja qual for a inclinação partidária, o SUS não progredirá: será eternamente um sistema capenga destinado aos pobres. E se o SUS for para pobres, quando pobres não têm voz, o SUS não terá força política. Se olharmos os números, a União vem se omitindo do financiamento. Mas com a inclusão do tema saúde na agenda política atual, via manifestação popular, as demandas estão sendo feitas. O governo está pressionado a dar respostas. Nesse aspecto, identifico apenas uma via: o financiamento do SUS só será resolvido se as pressões continuarem. É um patrimônio da sociedade, um projeto construído pelos brasileiros ao longo de décadas, com uma política de caráter universal, em defesa da equidade, que está expressa como direito de todos e dever do estado.