O aumento do uso de opioides no Brasil. E o controle dessas substâncias

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O jornalista André Cabette, do site Nexo Jornal, fez uma entrevista com o pesquisador do Laboratório de Informação em Saúde – LIS/Icict, Francisco Inácio Bastos, sobre o crescimento do consumo de opióides no Brasil. Leia abaixo, a matéria na íntegra, que foi publicada dia 06/07/2018.


Em 2015, os Estados Unidos registraram um acontecimento raro: a queda da expectativa média de vida da população, de 78,9 para 78,7 anos. A última vez em que uma queda ocorrera fora em 1993, durante o auge da epidemia de Aids.

Em 2016 o país registrou, no entanto, uma nova queda, para 78,6 anos. Foi a primeira redução consecutiva desde o início dos anos 1960.

Segundo pesquisadores ligados ao governo americano, o grande fator responsável por essa mudança na demografia do país foi a disparada de overdoses de drogas, em especial opiáceos e opioides.

Opiáceos são substâncias originalmente obtidas a partir do ópio, extraído da papoula. Entre as mais conhecidas estão a morfina e a heroína, que trazem sensação de relaxamento, alívio da dor e prazer. Essas substâncias podem ser sintetizadas completamente em laboratório. Nesses casos, são chamadas de “opioides”.

Desenvolvido no início do século 20, o opioide oxicodona passou a ser agressivamente promovido em campanhas de marketing como remédio para controle de dores crônicas desde meados da década de 1990 nos EUA, com nomes como OxyContin e Percocet.

Tratam-se de pílulas à base desse produto, que criadas de forma a levar a uma liberação lenta no corpo. O sucesso comercial fez com que se tornassem uma questão de saúde pública.

Hoje, o caso americano faz com que autoridades e pesquisadores ligados à área da saúde busquem compreender como a venda e o consumo de opioides e opiáceos tem se dado em seus países.

Elas não são essencialmente perversas, podem ser usadas, por exemplo, para aumentar a qualidade de vida nos cuidados paliativos, especialmente em casos de pessoas que sofrem de dores agudas, como pacientes que sofrem de câncer. Normalmente, o Brasil é apontado como uma nação que faz uso insuficiente dessas substâncias para controle da dor.

Uma pesquisa intitulada “Tendências na venda de opioides sob prescrição no Brasil Contemporâneo” aponta, no entanto, um aumento de 465% na venda desses remédios no país entre 2009 e 2015. A análise foi publicada em abril de 2018 na revista AJPH, ligada à Associação Americana de Saúde Pública.

Ela se baseia em registros da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) sobre cada prescrição que resultou uma venda. E indica que, mesmo com essa alta, o Brasil ainda está muito distante da realidade americana.

Essa contabilização é um indício importante sobre a circulação de opioides e opiáceos no país, mas não capta nuances. Por exemplo: uma venda com prescrição de quatro potes de 10 mg de oxicodona é contabilizada da mesma forma que uma venda com prescrição de apenas um pote de 10 mg do mesmo opioide.

O aumento das vendas de opioides e opiáceos no Brasil 

1.601.043 
Prescrições foram usadas para compra de opioides em farmácias no Brasil em 2009, segundo a pesquisa. Isso equivale a 8,28 prescrições para cada 1.000 pessoas

9.045.945 
Prescrições foram usadas para compra de opioides em farmácias no Brasil em 2015, segundo a pesquisa, um aumento de 465%. Isso equivale a 44,25 prescrições para cada 1.000 pessoas

Mesmo com o aumento, o país ainda está bem abaixo das 731,2 prescrições para cada 1.000 pessoas registradas nos Estados Unidos em 2017.

No Brasil, o aumento não foi puxado pelas vendas de oxicodona, mas sim de codeína, um opiáceo que ocorre naturalmente e foi descoberto ainda no século 19. Em 2015 a codeína respondeu por 98,1% das vendas de opioides e opiáceos no país.

A oxicodona teve um aumento grande de vendas apenas quando comparada ao patamar de 2009, que era baixo. As vendas de fentanil, um outro pivô da crise nos Estados Unidos, tiveram um aumento pequeno, mesmo nessa comparação.

OXICODONA
Em 2009 0,07 prescrição de oxicodona para cada com prescrição para cada 1.000 pessoas. Em 2015, foi vendido 0,8 para cada 1.000 pessoas 

FENTANIL
Em 2009 0,02 prescrição foi usada para a compra de fentanil para cada 1.000 pessoas. Em 2015, 0,05 para cada 1.000 pessoas

As brechas para a venda de opiáceos e opioides no Brasil 
O Nexo conversou sobre os resultados do estudo com um de seus autores, o pesquisador Francisco Inácio Bastos, da Fiocruz. Ele afirma que, possivelmente, o aumento das vendas se deve a fatores como o aumento da população idosa, que frequentemente convive com dores crônicas. E diz que há brechas no sistema de venda de opioides e opiáceos no país, o que dá abertura para que pessoas comprem esses produtos ilegalmente. No Brasil, os opiáceos e opioides são vendidos em receitas tipo A, emitidas em papéis de cor amarela. Para ter acesso a esses papéis, médicos devem requeri-los junto ao conselho regional de medicina correspondente, fazendo uso de seus números pessoais de registro junto a esses conselhos. Segundo Bastos, no entanto, frequentemente pessoas fraudam esse sistema: usam o número do registro de médicos irregularmente e obtêm acesso a esses papéis controlados. Além disso, há sites por meio dos quais é possível comprar opiáceos ilegalmente, sem prescrição. Na avaliação do pesquisador, a Anvisa não tem sido capaz de barrar essas páginas rápido o suficiente. Ele sugere a criação de um cartão eletrônico que registraria as receitas médicas, a compra e a venda de opiáceos.

Leia, abaixo, a entrevista com o pesquisador do Icict e um dos autores do artigo “Rising Trends of Prescription Opioid Sales in Contemporary Brazil, 2009–2015”. Francisco Inácio Bastos:

O que motivou a pesquisa? 
Participamos de um levantamento encomendado pela Senad [Secretaria Nacional de Política de Drogas] que enviou um questionário a 16 mil pessoas em 2015 sobre o uso de substâncias lícitas e ilícitas. O relatório final foi enviado em novembro de 2017, mas ainda não foi divulgado. Perguntamos sobre consumo de heroína [que é um opiáceo], e o consumo nos últimos 30 dias tinha sido praticamente zero. Perguntamos sobre o uso de opiáceos e opioides sem prescrição e, para nossa surpresa, encontramos uma proporção bastante alta para os padrões brasileiros. A pergunta é frágil, porque às vezes as pessoas usam [essas substâncias] sem prescrição médica por questões recreativas, às vezes simplesmente porque não têm médico. Tem chances de esse ser o caso, porque encontramos muitos casos no interior, onde pode não ter especialista que prescreva o remédio. Por conta desse achado, que foi mais alto do que esperávamos, pedimos para a Anvisa que fornecesse os dados sobre a venda oficial de opioides com prescrição em farmácias no Brasil inteiro. A Anvisa só registra medicamentos dispensados nas farmácias brasileiras. Mas se você abrir a internet encontra sites que também vendem esses produtos.

O que pode ter motivado o aumento na venda? 
Tem várias razões. Tem um consumo anterior muito baixo, uma população que envelhece, pessoas com problemas que geram dor crônica, como doenças reumáticas, e que vivem períodos muito mais longos. E teve a epidemia de chikungunya, que gera dor articular por muito tempo. É preciso distinguir a boa prática, para o paciente não sofrer com doenças oncológicas, ou doenças reumáticas graves. E as pouco apropriadas, com médicos mal treinados, sem supervisão.

Como se obtêm opiáceos e opioides no Brasil? Qual o nível de controle? 
No Brasil há os medicamentos que não têm controle, como o Tylenol, ou a Aspirina. E tem medicamentos que têm controle de receita médica, que fica retida [na farmácia após a compra], como os antibióticos. Tem também as receitas [em papéis] azuis, numeradas, como os tarjas pretas que podem causar dependência, como Rivotril, Frontal ou Valium. Apesar disso, um médico pode mandar fazer em qualquer gráfica. Para os opiáceos e opioides existe a receita amarela, que tem um nível maior de controle. Porque o médico tem que buscar ela em locais específicos. Mas alguém pode pegar meu [número do] Conselho Regional de Medicina e dizer que é o Francisco. Teoricamente, isso tem que ser verificado, mas nem sempre acontece. Já aconteceu comigo, já roubaram meu [número do] CRM. Realmente, a melhor forma seria um cartão com um chip, uma tarja magnética no espírito do cartão SUS [Sistema Único de Saúde]. Uma central registraria que o produto foi dispensado e quem comprou. Essa seria, realmente, a forma de ter um controle. Mas sem controlar a internet, que é muito mais difícil, na verdade você sempre terá um mercado aberto.

Como tem sido o controle na internet? 
A Anvisa faz um esforço permanente para tirar do ar esses sites de venda, mas, se você busca por produtos opioides, vê que eles se multiplicam como cogumelos. Se quiser um controle realmente eficiente, tem que ter uma velocidade de retirada muito grande.

O que pode vir com o controle insuficiente? 
Hoje no Brasil o papel da heroína é muito baixo. Mas tem sido observado nos Estados Unidos que pessoas com algum conhecimento de química têm capacidade de converter um produto em outro, como naquela série “Breaking Bad”. O que aconteceu nos Estados Unidos é que o mercado lícito e o ilícito acabaram se misturando. Você adquire um produto com uma finalidade e modifica para outra. É possível pegar o fentanil, manipular e produzir algo próximo da heroína. Por isso é preciso ter um controle bastante estrito. Uma pessoa pode comprar remédios em várias farmácias com prescrição de vários médicos, fazer um estoque e transformar aquele produto em uma substância para venda na rua.

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