O que temos pela frente

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Você já esteve em um “Uber”, próximo ao seu destino, quando o condutor recebe um alerta de chamada para aceitar ainda antes de você desembarcar? A inteligência artificial do software é capaz de calcular em milésimos de segundo que a alternativa para essa chamada em aberto pode ser o veículo em que você está, considerando a distância, o trajeto e as condições do trânsito naquele momento. Nenhum ser humano, monitorando centenas de mapas em tempo real pode fazer melhor que o software do aplicativo de transporte.

Nós somos capazes de inferir o drama que essa capacidade não humana significa para gerações de taxistas, desde o chofer de praça do século passado. Mesmo assim, salvo as exceções que confirmam a regra, a maioria das pessoas vai optar pela praticidade oferecida por esses algoritmos inteligentes.

O fato surpreendente consiste em que é provável que, em algum momento num futuro próximo, iremos fazer o mesmo em relação a advogados, engenheiros médicos e assistentes pessoais. Vamos preferir uma inteligência artificial ou cirurgião robótico que fez milhões de diagnósticos e centenas de milhares de cirurgias sem nunca ter errado a aquele simpático cirurgião que não concorda que todas as suas cirurgias sejam gravadas.

A inteligência é um fenômeno natural, relacionado a todos os processos biológicos. Seres vivos desempenham roteiros inteligentes e eficientes num modo de se perpetuarem como espécie. Eventualmente todos os protocolos falham e espécies de extinguem.

Pensávamos que o desenvolvimento tecnológico trazia a ameaça de que nossos artefatos atingissem autoconsciência e se voltassem contra nós. A realidade é mais simples, e talvez, mais terrível. Artefatos inteligentes podem tornar a existência da maioria dos humanos dispensável para o sistema de produção.

Estamos vivenciando o grande desacoplamento entre consciência e inteligência. A autoconsciência se desenvolveu como um meio para inventarmos tecnologias, extensões de nossas habilidades fisiológicas, na forma de ferramentas e técnicas. Essas técnicas nos levaram ao desenvolvimento da intersubjetividade – aquilo que de fato nos separa dos demais animais, segundo Yuval Harari.

Atualmente umas poucas mentes autoconscientes lutam pelo aperfeiçoamento e controle dos sistemas cognitivos artificiais que podem acabar por subverter a ordem do atual sistema de produção. Ferramentas simbólicas como a moeda e as leis, fortemente enraizadas em nossa intersubjetividade, tem sentido sob o pressuposto da centralidade do trabalho humano.

Mas, se a existência humana pode ser provida com cada vez menos trabalho humano temos uma erosão no sentido e significado do que nos define. Na ordem simbólica somos em relação direta com o que fazemos.

Um agricultor e um médico se diferenciam, mas também se definem, na medida do que fazem. Se medicina e agricultura forem amplamente mecanizadas e geridas por softwares inteligentes, o que passarão a ser médicos e agricultores?

E, finalmente, podemos começar a imaginar qual modo de exploração e dominação esses poucos humanos autoconscientes, donos das inteligências artificiais, irão impor ao restante da humanidade.

Se esse for o caso, a minoria que sobreviver a esse processo já não poderá mais ser considerada humana.