(Re) pensando Sonhos

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Esse texto tem por objetivo inicial trazer um panorama dos assuntos trabalhados no decorrer da disciplina de Saúde e Desejo – Desafios do Presente ministrada pela profª drª Cátia Paranhos Martins, parte do Programa de Pós-Graduação e Psicologia da Universidade da Grande Dourados, dando ênfase aos que mais se relacionaram com a pesquisa a ser desenvolvida pela autora durante o mestrado em Psicologia, com foco na análise das letras de rap enunciadas por mulheres negras, os demais objetivos ficam a critério do leitor e dos atravessamentos por ele sofridos.

Nessas tardes compartilhadas, tentamos compreender e nos permitir olhar de maneira distinta para problemas atravessados pelo presente, passado e futuro. Buscamos pensar o presente que nos acontece, aquilo que nos é comum, mas não deveria, a saúde enquanto política e por fim outras políticas de desejo e outros desejos políticos.

Fomos convidados a fugir de capturas naturalizantes da violência e criar linhas de fugas para alcançar uma saúde igualitária e de qualidade a todas (os), e assim nos propusemos a (re) descobrir caminhos que nos são postos.

Esse processo foi doloroso, composto por embates, discussões e conflitos pessoais, crescimento acompanhado de angustias, sentimentos de raiva e (des)esperança, mas também por muita força, resistência e a vontade de verdade compartilhada ao encontrarmos pessoas pensando em uma saúde e sociedade mais justas, lutando pelo SUS e por políticas públicas inclusivas.

Cecília Minayo nos conduziu a reflexão de que a violência é processo mutável, dependente da época, do local e das circunstâncias, e de tempos em tempos teremos violências toleráveis e violências intoleráveis, nos dias atuais a violência física e sexual contra as crianças é fortemente repudiada assim como os estupros, o mesmo não acontece com violências outras, como baixo investimento em saúde e educação, acesso a saneamento básico e lazer, ou então as agressões emocionais e psicológicas a crianças, idosos e mulheres.

Uma das violências toleráveis e legitimadas em nossa sociedade, desde o período colonial, é a violência contra a população negra trazida ao Brasil como mão de obra escrava por mais de 300 anos, para enfim, depois de muita luta e resistência ser libertada, e uso esse termo com imenso receio, pois as senzalas e os troncos não acabaram, foram substituídos por outras formas de violência, tão letais quanto, e como bem rima Emicida, em sua música Boa Esperança e os camburão o que são? Negreiros a retraficar. Favela ainda é senzala jão.

Não temos mais capitães do mato, as senzalas ou os troncos, pelo menos não mais com esses nomes. Temos o Estado, dando aval, legitimando e inocentando executores do genocídio de pessoas negras, se não mata a tiros, mata de fome, de frio, mata pela falta de assistência médica, pela falta de escolas ou no cárcere, acaba com a dignidade e com a esperança dos jovens negros moradores das periferias. Tássia Reis ao usar o rap como forma de enunciar suas vivências enquanto mulher negra traz a tona a relação entre saúde e pobreza e como a violência faz mal a saúde, se eu fugir da pobreza  eu não escapo da depressão um quadro triste e realista na sociedade machista as oportunidades são racistas. São dois pontos a menos pra mim é difícil jogar quando as regras servem pra decretar o meu fim. 

E se a justificativa para o que não se admite ser o genocídio da população negra são os índices de criminalidade em alta e a crise gerada por isso, podemos nos lembrar do trecho escrito pelo Comitê Invisível (2016) “a crise é desencadeada visando introduzir o remédio” (p. 18), a crise não é processo natural, mas sim um processo criado com um objetivo, quase sempre obscuro para os que serão afetados com ela.

Caso emblemático ocorrido no período de nossos encontros foi o assassinato de Evaldo dos Santos Rosa, no Rio de Janeiro. Os autores? Os que supostamente deveriam proteger e garantir segurança, o Exército Brasileiro. A justificativa? O carro levava bandidos portando armas, o que explica e justifica para alguns os 83 tiros que atingiram o carro. A realidade? O carro levava a esposa de Evaldo, o filho de sete anos, o sogro e uma amiga da família. A atitude dos militares? Fugir do local sem prestar socorro alegando ação motivada por legítima defesa. Evaldo foi mais um dos muitos homens negros assassinados com o aval do Estado, a punição de seus assassinos? O Superior Tribunal Militar votou pela liberdade dos militares envolvidos, e o caso será investigado pela Justiça Militar.

Nos acostumamos, mas não deveríamos, naturalizamos as violências diárias, as misérias produzidas pelo sistema econômico, sequer nos damos conta quando mais uma pessoa negra é assassinada pelas mãos do Estado, naturalizamos e racionalizamos que a guerra às drogas é necessária, logo algumas mortes são inevitáveis. Naturalizamos o cerceamento de diversos povos indígenas em reservas, ignoramos a crueldade e o extermínio ao qual são submetidos, aliviamos nossas consciências acreditando que assim estamos sendo generosos e garantindo seus direitos. Não nos impomos contra a cultura do estupro, sob a justificativa de que homens estuprarem é a ordem da natureza, pois não são capazes de controlar seus instintos, naturalizamos as agressões domésticas, afinal em briga de marido e mulher não se deve meter a colher.

Embora nos pareça absurdo que esses processos sejam comuns ou naturalizados com o decorrer do tempo, volto a lembrar o que nos avisa o Comitê Invisível, crises são fabricadas, existe um jogo muito mais complexo do que podemos ver a primeira vista, termos naturalizado essas violências serve à manutenção do sistema de produção que nos está posto.

Durante as discussões e as trocas de conhecimento na disciplina de Saúde e Desejo aprendemos e apreendemos formas de (re) pensar nossas pesquisas, abandonando pensamentos e produções hegemônicas de conhecimento, pensando os sujeitos em suas diversidades, especificidades, marcadores sociais e econômicos, étnico-raciais e diferenças de gênero e sexualidade, demos passos significativos para o sonho de uma Psicologia menos elitizada centrada em sujeitos brancos, heterossexuais, cisgênero e burgueses, para uma Psicologia(s) centrada nas particularidades e diferenças dos sujeitos buscando formas de garantir acesso e produzir saúde à todos e todas as classes, principalmente as minorias.

Questões não resolvidas do passado, como a escravidão, o epistemicídio dos povos indígenas e a violência contra a mulher, somadas as problemáticas de agora causadas por um cenário político social e econômico caótico, que despreza o diferente, alimenta o discurso de ódio e naturaliza a violência, os problemas do passado, atravessam e se unem aos atuais, gerando questões para um futuro que não se mostra tão distante assim. O sonho segue e a caminhada ainda é longa, por isso, é necessário começar, fica aqui o convite a quem nos lê, se permita e se possível siga os conselhos de Guatarri (1987) renuncie a “captura compulsiva de um objeto completo simbólico de todos os despotismos” e “a partir de posições de desejo e locais e minúscula, pôr em xeque, passo a passo, o com junto do sistema capitalista” (142-143). E por fim, não se esqueçam do que disse Foucault, onde há poder existe resistência, sigamos!

Referências

Guattari, Félix Revolução Molecular. Pulsações Políticas do Desejo. São Paulo: Brasiliense, 1987. (p. 142-143).

Minayo, Maria Cecilia. Violência e saúde [online]. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2006.

Comitê Invísivel. Aos nossos amigos. Crise e insurreição. São Paulo: n-1 edições, 2016.