Tratamentos*

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Pablo Dias Fortes

09/11/2017

 

Tratar todos nós nos tratamos, o tempo inteiro. Podemos nos tratar bem ou mal, em casa ou na rua, com remédios ou com justiça. Mas é apenas neste último caso que podemos definir realmente o que constitui um ‘maltrato’; e mais ainda: se acaso assim nos tratamos, o que nos resta fazer então para também nos retratarmos.

 

Trato é trato. E disso ninguém duvida. O que se questiona é como pode haver justiça ignorando justo aquilo que já está no contrato. Como em nossa Constituição, por exemplo; que logo em seu artigo 5º, também estabelece: ‘é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral’. Vamos repetir: ‘é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral’. Respeito? Do que se trata exatamente essa palavra?

 

Sua Excelência o ‘cidadão de bem’ costuma encher o peito quando diz: ‘a lei é para todos’. Mas o que significa esse ‘todos’? O que isso quer dizer quando nem mesmo o direito de encher o peito está totalmente garantido? Será porque é desse modo que erguemos melhor a nossa voz?

 

Sim, no peito guardamos amores, esperanças, medos e ressentimentos. Mas também podemos guardar bacilos. Bacilos que se multiplicam e se concentram, instalando-se no próprio tecido pulmonar, como se nada mais aí houvesse senão a cavidade de um lugar sombrio, senão a disputa por cada milímetro de espaço como princípio de sobrevivência.

 

Tuberculose. Esse é o nome que atribuímos a um desses eventos biológicos. É classificada clinicamente como uma doença, cuja transmissão é feita pelo ar – especialmente aquele que circula nos recintos mais exíguos. O mesmo ar que partilhamos para encher o peito enquanto nos comunicamos. O mesmo ar que serve de inspiração e metáfora para o grito mais antigo do ser humano: liberdade!

 

A tuberculose tem cura? Tem. E o seu tratamento é gratuito no Brasil. Mas parece que não temos cuidado desse assunto com tanto trato assim. Nosso destrato permanece ainda como único sintoma do verdadeiro ‘Estado’ em que nos encontramos. São quase 70.000 pessoas infectadas por ano. Quase 5.000 vítimas fatais. Quase todas pobres como pretas de tão pobres. Todas quase pretas como pobres são as presas.

 

O título deste seminário inclui a pergunta: ‘como tem sido tratada a população privada de liberdade no Brasil?’. Mas convém não nos enganarmos. Por aqui, ‘ser livre’ nunca deixou de ser um privilégio. O racismo continua a ser o veneno que nos entorpece, a droga que usamos para distorcer a realidade e tornar tudo menos visível, pior ainda que um bacilo.

 

O racismo está na origem do Brasil. Está pregado em suas entranhas e cercado por mil farpas de muro, concreto e indiferença. Foi ele que ‘emparedou’, por exemplo, o nosso maior poeta simbolista, Cruz e Sousa, morto por tuberculose e quem, ‘na bruma crepuscular de certas melancolias’, entoou para sempre a sua dor.

 

‘Todo o direito acaso não se baseia na vitória da palavra sobre a violência?’, questionou-se uma vez o filósofo Paul Ricoeur. Ao que poderíamos também acrescentar, parafraseando Fanon: ‘Que nos seja então permitido descobrir e querer bem ao ser humano, onde quer que ele se encontre’.

 

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* Texto elaborado para o seminário ‘Justiça e Saúde na perspectiva dos direitos humanos: como tem sido tratada a população privada de liberdade no Brasil?’