Você escolhe: acolher ou abandonar?

11 votos

Trabalho realizado por Laís Rosa, vinculado ao estágio em CAPS  no Internato em Saúde Mental do Curso de Graduação em Medicina da Universidade Federal de Alagoas, sob supervisão e orientação do professor Sérgio Seiji Aragaki. 

 

Na quinta-feira (25/10/2018) tive a oportunidade de me reunir com alguns usuários do CAPS em uma oficina de trabalhos manuais. Sentamos em uma mesa e, enquanto eles me ensinavam a bordar, fazer crochê e produzir pastas de plástico, conversamos sobre coisas do nosso cotidiano.

Em um dado momento um dos usuários, que aqui chamarei de João, estava meio desanimado e querendo desistir da atividade e eu disse a ele que, se ele concluísse aquela pasta que estava produzindo até a hora de sair do CAPS, eu a compraria. Não era uma caridade, eu realmente tinha adorado a ideia da pastinha – e uso muito -, mas notei que a partir daquele momento o João resolveu fazer acontecer. Não só concluiu a minha encomenda, como finalizou mais uma.

Enquanto ele produzia, me contava dos planos de melhorar a qualidade do seu produto e, quem sabe, dali a um tempo, produzir aquelas pastas como renda complementar ao seu benefício que – segundo ele – não era usado apenas para beneficiar a ele e sua mãe, mas toda a família da tia que os acolhia. Contou ainda sobre seus internamentos no Hospital Psiquiátrico da região, de onde disse sair “até meio doido”. Falamos também sobre como ele havia chegado a este CAPS onde nos encontrávamos (segundo ele, é um dos mais antigos ali) e ele me mostrou o quanto aquele espaço era importante em sua vida.

Naquele dia de trabalhos manuais, eu ainda não tinha assistido ao documentário “Em nome da razão”, mas foi impossível não lembrar dessa conversa ao ver as cenas que me lembraram tanto a realidade do Hospital Psiquiátrico de nossa cidade(guardadas as devidas proporções).

Enquanto João me contava das suas experiências e de seus problemas, aquele texto longo e técnico que havíamos recebido por e-mail deixava de ser só mais uma fundamentação teórica e fazia mais e mais sentido. Nada ensina mais que encarar o projeto colocado em prática.

Hoje, diante das pouquíssimas, porém riquíssimas vivências que tive, posso dizer que reforma psiquiátrica é, antes de mais nada, um movimento humanitário essencial ao desenvolvimento saudável da sociedade brasileira.

Ao entrar em um Hospital Psiquiátrico a primeira imagem é a imagem do abandono. E esta imagem está correta. Hospitais de internação psiquiátrica não surgiram com a intenção de reintroduzir o doente psiquiátrico à sociedade, mas com a missão de torná-los um “problema” invisível aos olhos daqueles considerados “normais”.

Mas, afinal, o que esperar de uma sociedade, cuja porção que detém pleno controle de suas faculdades mentais, permite que seres humanos vivam amontoados em manicômios? O que esperar de uma sociedade que isola todo aquele que a incomoda? O que esperar de uma sociedade que nega direitos humanos básicos a um grupo por ela considerado “inferior”?

Diante destas e outras diversas questões, surge um processo político e social encabeçado por forças das mais diversas origens sociais em prol dos direitos dos pacientes psiquiátricos. É a chamada Reforma Psiquiátrica.

A Reforma Psiquiátrica é a revolucionária ideia de que o doente mental merece o benefício dos famosíssimos Direitos Humanos estabelecidos pela Organização das Nações Unidas em 1948, porque, afinal, doente mental também é ser humano.

Esse processo, surge ao mesmo tempo que os movimentos sanitários nos anos 70, mas, apesar de também propor alterações nos modelos de atenção e gestão da saúde pública, possui uma história própria. À época, a violência asilar a qual os pacientes psiquiátricos eram submetidos vinha sendo questionada no mundo inteiro, bem como o modelo clássico de assistência centrado no hospital psiquiátrico.

Nesse contexto, começam a surgir propostas de transformações de práticas para promover o desenvolvimento de um modelo de assistência à saúde mental voltado para a reintrodução desses doentes na sociedade, e não para o isolamento definitivo dos mesmos em instituições hospitalares.

No Brasil, a Reforma se consolida na III Conferência Nacional de Saúde Mental no ano de 2001, quanto torna-se política de governo. É nessa conferência que os CAPS assumem posição estratégica na mudança da assistência prestada e que a discussão entre diversos movimentos sociais, usuários e seus familiares constrói a base teórica e política que norteia toda a política de saúde mental do Brasil.

A partir desse momento, o Sistema Único de Saúde (SUS), passa a movimentar-se na promoção de um processo desinstitucionalização, através da diminuição gradual e controlada do número de leitos em hospitais psiquiátricos, símbolo histórico de um modelo hospitalocêntrico incompatível com a nova proposta do SUS.

Entretanto, esse processo de desinstitucionalização não se dá de maneira desacompanhada, ao contrário trata-se de uma expansão de serviços substitutivos aos hospitais. Para isso, conta com programas, como o Programa Nacional de Avaliação do Sistema Hospitalar/Psiquiatria (PNASH/Psiquiatria), o Programa Anual de Reestruturação da Assistência Hospitalar Psiquiátrica no SUS (PRH), o Programa de Volta para Casa e com a expansão de serviços como as Residências Terapêuticas e os Centros de Atenção Psicosocial (CAPS).

O PNASH/Psiquiatria avalia a estrutura física, a dinâmica de funcionamento, os processos e recursos terapêuticos dos hospitais psiquiátricos e a satisfação de pacientes longamente internados e dos pacientes às vésperas de receber alta. Essa avaliação gera uma pontuação que classifica os hospitais psiquiátricos, e que encaminha aqueles hospitais classificados como de baixa qualidade para o descredenciamento pelo Ministério da Saúde.

O PRH, por sua vez, tem função de promover redução progressiva e pactuada de leitos de macro-hospitais (>600 leitos) e hospitais de grande porte (>240-600 leitos), transicionando esses leitos de maneira segura para o novo modelo de assistência.

Já o Programa de Volta para Casa visa contribuir efetivamente para o processo de inserção social das pessoas com história de internação longa em hospital psiquiátrico, através do pagamento mensal de auxílio-reabilitação aos beneficiários. Este é um dos instrumentos mais efetivos para a reintegração social dessa população, garantindo o bem-estar da pessoa e estimulando o exercício pleno da cidadania desse indivíduo.

Dentre os serviços que apresentam papel fundamental na manutenção do bem-estar das pessoas com transtornos mentais graves, estão as Residências Terapêuticas. Essas residências são casas que respondem à necessidade de moradia de pessoas com doenças mentais graves, sejam elas oriundas de hospitais psiquiátricos ou não. Esses locais devem garantir, além do direito de moradia desses cidadãos, o auxílio à sua reinserção na comunidade, estimulando sempre a autonomia do usuário. Para garantir o melhor andamento do serviço, essas casas devem contar com, no máximo, oito moradores e um cuidador que os auxilie.

Por fim, voltamos ao serviço que me proporcionou a construção desse texto: os CAPS. O CAPS apresenta-se como uma opção substitutiva ao Hospital Psiquiátrico. Esse espaço, além de oferecer atendimento clínico diário, deve promover a inserção social de seus usuários, servir como porta de entrada da rede de assistência em saúde mental e dar suporte à rede básica no que se refere a saúde mental. Eles são articuladores da rede, são produtores de autonomia e são fortalecedores dos laços sociais entre o usuário e sua comunidade.

Se olharmos com atenção, toda essa teoria pode ser ensinada através da vida do João e de tantos outros jovens portadores de doença mental que tiveram a chance de fazer parte de um local de acolhimento, construção e restauração. Ele é só mais um dos tantos usuários, que hoje são capazes de contribuir para a construção de um mundo mais plural,digno, justo e, porque não, com menos abandono.