Fragmentos de um discurso amoroso – uma tarde no Hospital das Clínicas de São Paulo

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Fragmentos de um discurso amoroso –  uma tarde no Hospital das Clínicas de São Paulo

Acompanho a minha filha em seu tratamento no Hospital das Clínicas há alguns anos e trabalho num outro hospital público há 34 anos. Vivo cenas entristecedoras ao lado de outras bastante belas. Uma das tristes é o cortejo de filas provocadas pela realidade de poucos trabalhadores para muitos pacientes. Por outro lado, há cenas de rara beleza.

A filha e eu trazemos nossos livros para ler enquanto aguardamos a vez, mas a atenção flutuante sempre presente neste tipo de situação nos convoca à liga pelo curso de alguns diálogos acontecendo ao nosso lado. Sem contar que no meu caso a atenção ao discurso do outro por trinta e quatro anos de escuta, sou psicóloga, virou um vício inapelável.

 

Fragmentos de vida, doença e morte percorrem as salas de espera dos hospitais, mesmo em espaços ambulatoriais, onde supostamente se vive com menor intensidade os desfechos mais radicais. Mas, ao mesmo tempo, vemos, ouvimos e participamos de uma espécie de onda solidária, uma identificação pelo que nos une ali, uma experiência do comum.

 

Nesta tarde quente e modorrenta – sim, porque, por razões óbvias, não há ares condicionados e outros confortos caros dos hospitais privados, devidamente cobrados nas contas dos usuários –  ainda capturados por uma atmosfera de sensações minimais que o contexto acentua, vemos a cena. Uma senhora é abraçada por internos ou residentes, não sei, e auxiliares de enfermagem. Brincam com o sumiço dela por tantos meses. E combinam rindo entre eles sobre um possível pito ou castigo merecido. Ela se ilumina com a abordagem calorosa e brinca junto.

 

Deixo aqui o depoimento da Dona Dirce, um fragmento de um discurso amoroso:

Dirce Lopes, 83 anos, quatro filhos, um “de criação”, sem marido

Iza; Escutei que a senhora vem aqui há quarenta anos desde a inauguração do HC?

Dirce: Isso! Aqui o atendimento é maravilhoso e se não for eu quebro o pau… a gente tem que ter o beneficio prá gente porque o governo só manda fazer, não vai ver o que tá se passando dentro do hospital. Quando tem alguma coisa ruim eu sou a primeira a dar palpite, opinião.
Primeiro eu quebrei o braço e a perna e fiquei internada aqui. Depois operei o coração. Depois cabeça e pescoço. Sempre fui bem atendida aqui. Porque se não for, eu…

Iza: Então, foi porisso que eles vieram tão carinhosos abraçar a senhora? Eles têm medo? Não me pareceu…

Dirce: Eu conheço todos, as meninas, os médicos…

Iza: Quem são as meninas?

Dirce: São as enfermeiras, as atendentes … vão comigo lá fora, tomam café … eu já saí prá almoçar com os médicos. Médico aqui é da hora, ligam prá gente perguntando…

Iza: E a senhora já brigou aqui?

Dirce: Sim, uma vez atenderam todo mundo e não me atenderam. Perderam a minha ficha. Aí eu falei que isso é falta de atenção, por que se elas tão nesse emprego é prá atender a gente. Se não têm respeito com a gente, vão ter com quem? Se elas tem essa profissão, é prá atenderem bem porque nós já sofremos em casa com tanta coisa… a gente vem aqui prá ter um pouco de calor humano, elas têm que ser melhores do que a gente. Há pouco tempo eu quebrei o braço e eles me trataram com todo o carinho, com respeito. Já tratei cancer aqui, falei que sou fundadora daqui. Fiquei com essa voz…

Iza: Voz grave, né? Mas parece voz de cantora de samba-canção… (E ela começa a cantar). Comento que é isso mesmo, tem que aproveitar. E ela diz:

Dirce: Claro, minha filha, eu não vou ficar reclamando aqui não… vou dançar um samba-canção aqui.

Iza: Isso aí, dar a volta por cima.

Dirce: Eu fiquei internada quando fiz a cirurgia do cancer e quando tive alta o pessoal não queria me deixar ir embora. Sabe o que acontece? Deus não deu permissão prá gente ficar triste, ele testa a nossa capacidade prá ter fé. Eu sou da igreja messiânica e já encaminhei muita gente… não desfazendo das outras religiões, mas a gente procura aquele que tem acolhimento, atenção, não é verdade? Lá tem carinho de família.

( Pede meu nome para as suas orações )

A querida companheira de RHS, a Jacqueline Abrantes também deixa um outro depoimento-poema sobre os usuários aqui:

Vestido comprido estampando miúdas flores azuis, ela surgia. Os pés latejantes dentro dos velhos chinelos seguiam indecisos. Caminhar para qualquer lugar era o seu modo de fazer a vida andar além dos 78 anos datados no documento de identidade. Na sacola dependurada em um dos braços, acumulavam-se junto ao documento, inúmeros papeis de receitas, o cartão do SUS, comprovante de residência, embalagens de medicamentos, biscoitos, encaminhamentos e resultados de exames.
No outro braço, o guarda-chuva, quase nunca aberto, ajudava a equilibrar os passos entre a rua e o meio-fio da calçada. “É pra me proteger da quentura desse sol, minha filha”, dizia ela.
E assim, de passo em passo, ao som da sacola de plástico ao vento, detinha entre os dedos uma das contas do rosário. Sua prece era conversa consigo, era suspiro, era lamento, era gratidão, companhia, via de saída da solidão. Sua oração era composição de sua história.
Sua presença na Unidade de Saúde nunca era novidade. Era tão religiosa quanto os dedos que percorriam o rosário; tão repetitiva quanto os comentários proferidos nos corredores: “Ela tá aqui de novo.” “Mas já não veio ontem?” “E anteontem também.” “Vai lá saber o que ela quer. Ela pertence a sua área.”
Passava pela recepção e perguntava pelo doutor, mas nem esperava a resposta. Adentrava na sala de preparo estirando o braço sobre a mesa e avisando que queria só ver como estava a pressão naquele dia. Entrava na sala da regulação para se informar se a consulta da vizinha ao cardiologista havia sido marcada. Caminhava até a farmácia em busca dos medicamentos disponíveis para as dores que sentia no corpo. Depois, seguia em direção ao banco da sala de espera onde via TV e adormecia.
Em cada setor, ao se sentir bem atendida, retirava da sacola um pedaço de papel e uma caneta, dizendo: “ Anote aqui o seu nome completo, minha filha! Vou botar você nas minhas rezas. ”
“Quando doi, grito ai
Quando é bom, fico bruta
As sensibilidades sem governo
Mas tenho meus prantos,
Claridades atrás do meu estômago humilde
E fortíssima voz para cânticos de festa
Quando escrever o livro com o meu nome
e o nome que eu vou pôr nele, vou com ele a uma igreja
a uma lápide, a um descampado.
para chorar, chorar, e chorar,
requintada e esquisita como uma dama. (Adélia Prado, Grande desejo)

Escutar a história dela foi como ler pela primeira vez um trecho de um poema de Adélia Prado.
“Queria ter uma casa minha, cozinhar, criar meus cachorros, mas não me dou muito em casa; queria um canto meu nem que fosse pra chorar ”. Contou que se apertava em uma casa de dois cômodos com 14 pessoas e dividia a pequena cama de solteiro com um dos netos. As músicas por eles tocadas não eram as que ela queria ouvir; seus olhos não a viam, suas vozes não se dirigiam a ela; perturbavam seu coração, suas rezas e seus pensamentos. Falou do quanto gostaria de conhecer as histórias dos livros. Não sabia ler as letras escritas, mas aprendera a “copiar” seu nome embaixo do nome escrito pela neta. Treinou tantas vezes! Realizou o grande desejo de votar, num tempo em que pessoas “não letradas” não tinham esse direito.
Seu rosário repousa sobre a mesa. Confesso que ao lembrar dela, penso no meu nome dentre os inúmeros escritos na sua lista de orações.