Relatos da UBS Santa Cecília/SP – participação do usuário na construção do SUS

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Desde 2006 sou cadastrada no programa municipal para recebimento de insumos de diabetes na Unidade Básica de Saúde próxima à minha residência, a UBS Dr. Humberto Pascale – Santa Cecília (Rua Vitorino Carmilo, 599, na Capital de São Paulo). 

 

 

 

Até meados de 2015 comparecia à unidade apenas para retirar fitas medidoras, lancetas e lixo para pérfuro-cortantes. Mas depois que cancelei meu plano de saúde e decidi fazer o acompanhamento da minha saúde quase totalmente pelo SUS, comecei a frequentar a UBS com uma constância maior, e acabei percebendo como esse vínculo com a unidade ajuda a promover um cuidado mais integralizado à minha saúde.

 

Do ano passado pra cá já passei por consultas com vários especialistas, fiz alguns exames, retirei insumos e medicamentos, tomei vacinas e me inscrevi em programas variados de saúde. Em algumas dessas vezes tive muita dificuldade de acesso aos atendimentos (já passei um dia inteiro na UBS conseguindo apenas parte do que precisava) e em outras vezes fui completamente atendida em pouquíssimo tempo (há um mês consegui marcar consulta com oftalmologista e clínica geral, retirar exames e medicamentos, tomar vacina contra influenza e passar por consulta com endocrinologista, tudo em menos de duas horas). 

 

Essas experiências práticas me trazem muitas reflexões sobre formas de melhorar o sistema único de saúde, mas nunca compartilhei publicamente o que acontece durante as minhas idas e vindas da UBS Santa Cecília. Resolvi então começar a relatar as minhas visitas à unidade no blog (na nova seção “UBS Santa Cecília/SP“), abraçando a diretriz constitucional da participação da comunidade na construção do SUS, a exemplo de amigos e amigas que fazem isso Brasil afora, entre elas nossa companheira Márcia Meirellys de Aracaju/SE (https://redehumanizasus.net/93650-a-charmosa-ubs-dona-sinhazinha-em-aracaju-se-se-destaca-por-levar-a-serio-as-campanhas-junto-a-comunidade).

 

Ressalto o caráter não maniqueísta desses relatos, que buscarão mostrar o que precisa ser aperfeiçoado e o que já funciona no “SUS que dá certo”, na tentativa de construir uma narrativa que problematize o sistema único de saúde sem perder de vista toda a sua complexidade.

 

Segue então o relato de hoje, 10 de maio de 2016:

 

 

Compareci à UBS Santa Cecília com 3 objetivos: retirar os insumos do kit diabetes (https://deboraligieri.blogspot.com.br/2015/12/kit-diabetes-programa-de.html), retirar o medicamento indicado pela neurologista para tratamento de neuropatia (tiamina) e me inscrever no programa de cessação do tabagismo.

 

Ao chegar na sala de atendimento do kit diabetes percebi que a pessoa que costuma nos atender não estava lá, porque substituiria uma colega na parte da tarde que estava de férias. A funcionária que (quase não) me atendeu disse que não forneceria insumos para mais ninguém, porque já havia atendido 18 pessoas e tinha outros serviços para fazer no seu próprio setor de trabalho. Mas briguei e insisti que esse era meu direito, e que eu estava marcada para aquele dia e horário (10 horas da manhã), e consegui receber as fitas medidoras (as lancetas estão em falta nessa UBS desde março).

 

Em seguida me dirigi à sala 23 no térreo onde são cadastradas as pessoas interessadas em participar do grupo anti-tabagismo. A sala estava aberta mas vazia, e havia duas mulheres esperando para receber outros atendimentos. 

 

Precisei então ir ao banheiro, mas o toilette feminino do primeiro andar estava quebrado. Subi ao segundo andar e lá também não era possível usar o banheiro feminino porque estava interditado. Um rapaz trans que ali estava disse para eu usar o masculino já que “a única diferença é o gênero”. Libertada das amarras de gênero, usei o banheiro masculino e desci novamente para a sala 23.

 

A funcionária ainda não havia retornado, então verifiquei se o número da minha senha para retirar a tiamina (havia pegado a senha assim que entrei na UBS) estava próximo. Como ainda faltavam muitos números, retornei à sala 23, e desta vez a funcionária havia chegado e estava atendendo uma das mulheres. A segunda usuária, na verdade, não estava esperando atendimento na sala 23, mas aguardava a coordenadora do kit diabetes para reclamar que não recebera os insumos por recusa da profissional que não a atendeu, mesmo ela estando marcada para hoje.

 

Fui então chamada na sala 23. A funcionária que me atendeu conversava com um colega e uma colega da UBS, que dela caçoavam porque um usuário a chamara de “mal amada e mal comida”. Mesmo assim ela me atendeu gentilmente, me cadastrou no programa de cessação do tabagismo e me explicou que assim que o grupo fosse formado alguém entraria em contato comigo para informar a data do primeiro encontro na UBS.

 

Voltei então à fila para retirada da tiamina, mas ainda faltavam 10 números (da senha não preferencial) e já eram 11h30, e eu precisava passar no supermercado e preparar o almoço. Como ainda tenho em casa uma caixa de tiamina (comprada na drogaria), resolvi retornar outro dia.

 

Talvez a UBS Santa Cecília precise de mais funcionários, porque vários trabalhadores estão realizando múltiplas tarefas em setores diferentes, o que prejudica a saúde física e psicológica do profissional e também dificulta o acesso aos serviços pelos usuários, que nem sempre compreendem as dificuldades de quem trabalha nesse esquema. Por outro lado, alguns funcionários também se prendem a regras burocráticas (ou não) criadas para garantir o acesso mas que, na prática, acabam por criar barreiras ao atendimento. 

 

O que significa ter atendido 18 pessoas? Todas aquelas cadastradas e marcadas para o dia devem ser atendidas. E como colocar uma funcionária para realizar um trabalho para o qual não foi preparada, em acréscimo às demais tarefas já realizadas normalmente (fornecer os insumos é apenas uma parte, é necessário ainda preencher documentos e organizar agenda para as próximas retiradas de cada usuário)?

 

E por que estão faltando insumos do programa de automonitoramento glicêmico? Há relatos de falta de fitas e lancetas em toda a cidade de São Paulo. A prefeitura não recebeu os recursos para financiamento do programa? Se recebeu, qual seria o motivo da falta, problemas com as fornecedoras dos produtos (Roche – fitas medidoras, e G Tech – lacetas)? Os usuários precisam saber a causa do problema para buscar a solução.

 

Todos os banheiros devem estar em funcionamento para atender as pessoas, principalmente quando há demora no atendimento (a fila de medicamentos era longa hoje, por isso demorou mais, todavia há dias em que a espera dura menos de 5 minutos). Mas se o gênero é o que impede o atendimento a uma necessidade fisiológica, desfaçamos então os gêneros!