Bem vindo ao Deserto do Real, ou, Como Será a Vida depois da Tomada do Alemão?
A classe média carioca, o “asfalto” como se diz por lá, com reflexo em toda sociedade brasileira, vive em meio à violência. Nisso não há nada de novidade. O que tem sido tomado como natural é o senso comum de que a origem desta violência está localizada nas classes pobres, nos favelados. Afinal, são eles que portam as armas, são donos do tráfico, imprimem o terror. Claro, não se podem excluir as exceções, mas por serem raras, quando ocorrem, ocupam cada centímetro das colunas jornalísticas.
A “retomada” do Complexo do Alemão, desalojando o mal que lá se concentrava, pelas forças do aparelho de guerra do Estado, sinaliza, neste sentido, um alento a toda sociedade. É evidente que isso não deve ser desqualificado. Havia – e ainda há – muito sofrimento ali, como em muitos núcleos nas cidades deste país, sendo lógico que as ações, que todos pudemos acompanhar confortavelmente instalados em nossos sofás, poderão promover outra maneira de viver da população local. A questão é exatamente o: “e agora?”. Será que a ideia do mal encarnado num seguimento social, num certo espaço físico, num demônio tatuado, portando fuzil e com a cara cheia de crack ainda dominará nossas fantasias, ocupando o lugar da realidade? Quem sabe, de outro modo, podemos, em vista de tanto sofrimento, compreender de fato e de direito todo aspecto do modo de vida característico de nossa era, o que se passa com nossa sociedade, a responsabilidade de cada indivíduo no que ocorre ao seu redor. Lembrei-me, a respeito disso, de um texto do filósofo Slavoj Zizek sobre os acontecimentos de 11 de setembro, que reproduzo abaixo, e que, de alguma maneira, nos coloca defronte a um real, do qual, insistentemente, procuramos fugir.
BEM VINDO AO DESERTO DO REAL Slavoj Zizek (Fonte: Jornal "Folha de São Paulo"), extraído de https://www.cefetsp.br/edu/eso/terrorismousa/Slavojatentado.html – 23 de setembro 2001 – Queda do World Trade Center ruiu percepção de que EUA poderiam viver em um mundo de especulações desconectadas da esfera da produção material e força país a atravessar tela fantasmática que o separa do exterior A fantasia paranóica americana máxima é a de um indivíduo vivendo em uma pequena e idílica cidade californiana, um paraíso consumista, indivíduo que de repente começa a suspeitar que o mundo no qual vive seja falso, um espetáculo encenado para convencê-lo de que ele vive em um mundo real, enquanto todas as pessoas à sua volta são efetivamente atores e figurantes em um programa gigante. O exemplo mais recente disso é "The Truman Show" (1998), de Peter Weir, com Jim Carrey no papel de um vendedor de seguros da cidadezinha que gradualmente descobre ser o protagonista de um programa de TV permanente e transmitido 24 horas por dia: sua cidade natal é construída dentro de um gigantesco set de filmagem, com câmeras que o seguem permanentemente. Entre seus predecessores, vale a pena mencionar o livro "Time Out of Joint" (Tempo Fora dos Eixos), de Philip K. Dick, no qual o protagonista, vivendo uma vida cotidiana modesta na mesma idílica cidade californiana no final dos anos 50, gradualmente descobre que a cidade inteira é um embuste encenado de forma a mantê-lo satisfeito… A experiência subjacente de "Time Out of Joint" e "The Truman Show" é que o paraíso consumista californiano do capitalismo tardio é, em sua própria hiper-realidade, de certa forma irreal, insubstancial, privado de inércia material. Então não é apenas Hollywood que encena uma aparência de vida real privada do peso e da inércia da materialidade -na sociedade consumista do capitalismo tardio, a própria "vida social real" de algum modo adquire características de uma sociedade encenada, com nossos vizinhos na vida "real" agindo como atores e figurantes… Novamente a verdade máxima do universo capitalista, utilitário e desespiritualizado, é a desmaterialização da própria "vida real", a inversão desta em um show espectral. Entre outros, Christopher Isherwood deu expressão a essa irrealidade da vida cotidiana norte-americana, exemplificada no quarto de motel: "Motéis norte-americanos são irreais! (…) Eles são deliberadamente projetados para serem irreais. (…) Os europeus nos odeiam porque nós nos retiramos para viver dentro de nossas propagandas, como ermitões entrando em cavernas para se dedicar à contemplação". O conceito de Peter Sloterdijk de "esfera" é aqui literalmente realizado, como a gigantesca esfera de metal que envolve e isola a cidade inteira. Anos atrás, uma série de filmes de ficção científica como "Zardoz" (1974) e "Logan’s Run" (1976) prognosticou a condição pós-moderna atual ao estender essa fantasia à própria comunidade: o grupo isolado vivendo uma vida asséptica em uma área isolada ambiciona a experiência de um mundo real de decadência material. "Matrix" (1999), o hit dos irmãos Wachowski, trouxe essa lógica ao seu ápice: a realidade material que todos nós experimentamos e vemos à nossa volta é uma realidade virtual, gerada e coordenada por um gigantesco megacomputador ao qual estamos todos conectados; quando o herói (papel desempenhado por Keanu Reeves) desperta na "realidade real", ele vê uma paisagem arrasada plena de ruínas queimadas -o que restou de Chicago após uma guerra mundial. O líder da resistência Morpheus pronuncia a saudação irônica: "Bem-vindo ao deserto do real". Não foi algo da mesma ordem que ocorreu em Nova York no dia 11 de setembro? Seus cidadãos foram apresentados ao "deserto do real" – para nós, corrompidos por Hollywood, a paisagem e as cenas que vimos das torres arruinadas não puderam deixar de nos lembrar das sequências mais impressionantes dos grandes filmes de catástrofe. Ao ouvir como os ataques foram um choque totalmente imprevisto, como o inimaginável impossível aconteceu, deve ser lembrada outra catástrofe definidora, do começo do século 20: aquela do Titanic. Também foi um choque, mas o espaço para ele já havia sido preparado em fantasias ideológicas, já que o Titanic era o símbolo do poder da civilização industrial do século 19. O mesmo não é verdade para esses ataques? Não apenas a mídia nos bombardeava o tempo todo falando da ameaça terrorista; essa ameaça era também obviamente libidinalmente investida -basta lembrar a série de filmes, de "Fuga de Nova York" a "Independence Day". O impensável que aconteceu era portanto o objeto de fantasia: de certo modo, os EUA receberam aquilo que era o objeto de suas fantasias, e isso foi a surpresa maior. É precisamente agora, quando estamos lidando com o real cru da catástrofe, que devemos ter em mente as coordenadas ideológicas e fantasmáticas que determinam a percepção dela. Se há algum simbolismo no colapso das torres do World Trade Center, ele não é tanto a antiga noção de "centro do capitalismo financeiro", mas, ao contrário, a noção de que as duas torres representavam o centro do capitalismo virtual, de especulações financeiras desconectadas da esfera da produção material. O impacto estilhaçador dos ataques só pode ser medido contra a fronteira que hoje separa o Primeiro Mundo digitalizado do Terceiro Mundo "deserto do real". É a consciência de que nós vivemos em um universo artificialmente isolado que gera a noção de que um agente ominoso nos ameaça todo o tempo com a destruição total. Foi, consequentemente, Osama bin Laden a mente criminosa que surgiu como a principal suspeita dos ataques, e não a contraparte na vida real de Ernst Stavro Blofeld, o mestre criminoso na maioria dos filmes de James Bond, envolvido em atos de destruição global. O que deve ser lembrado aqui é que o único lugar em filmes hollywoodianos em que nós vemos o processo de produção em toda a sua intensidade aparece quando James Bond penetra o domínio secreto do mestre criminoso e localiza ali o lugar de trabalho intenso (destilação e embalagem das drogas, construção do míssil que destruirá Nova York…). Quando o mestre criminoso, após capturar Bond, o leva em um passeio por suas instalações ilegais -não é isso o mais próximo que Hollywood chega de uma orgulhosa apresentação socialista-realista da produção em uma fábrica? E a função da intervenção de Bond, é claro, é explodir em fogos de artifício o local de produção, permitindo a nós o retorno ao aspecto diário de nossa existência em um mundo com a "classe trabalhadora em desaparecimento". Não foi isso que aconteceu na explosão das torres do World Trade Center, essa violência, comumente dirigida ao ameaçador Exterior, voltada contra nós? A esfera segura em que os americanos vivem é experimentada como sob uma ameaça constante do Exterior de ataques terroristas, que são impiedosamente auto-sacrificantes e também covardes, que são afiadamente inteligentes e também bárbaros primitivos. Sempre que encontramos um mal tão puro no Exterior, nós devemos reunir a coragem para apoiar a lição hegeliana: nesse Exterior puro, nós devemos reconhecer a versão destilada de nossa própria essência. Pois nos últimos cinco séculos a prosperidade e paz (relativas) do Ocidente "civilizado" foram compradas pela exportação de impiedosa violência e destruição ao Exterior "bárbaro": a longa história desde a conquista da América ao massacre no Congo. Por mais que soe cruel e indiferente, nós também deveríamos, agora mais do que nunca, ter em mente que o efeito desses ataques é de fato muito mais simbólico do que real. Os EUA apenas provaram o que acontece no resto do mundo diariamente, de Sarajevo a Grozni, de Ruanda e do Congo a Serra Leoa. Se forem adicionados à situação em Nova York atiradores de elite e estupros em massa, é possível ter uma idéia do que era Sarajevo uma década atrás. Foi quando assistimos na tela de TV ao colapso das duas torres do World Trade Center que se tornou possível experimentar a falsidade dos "reality shows" da TV: mesmo se esses shows forem "de verdade", as pessoas ainda atuam neles -elas simplesmente atuam como elas mesmas. O aviso padrão em um romance ("as personagens deste texto são ficcionais, qualquer semelhança com pessoas da vida real é mera coincidência") também é verdade para os participantes dessas novelas "reality": o que vemos lá são personagens ficcionais, mesmo se eles atuam como si próprios "de verdade". É claro, o "retorno ao real" pode receber diferentes desvios: comentadores de direita, como George Will, quase imediatamente proclamaram o fim das "férias" que os EUA haviam tirado da história – o impacto da realidade tendo estilhaçado a torre isolada da atitude liberal tolerante e o enfoque dos "estudos culturais" na textualidade. Agora nós somos forçados a revidar, a lidar com inimigos reais no mundo real… Entretanto revidar contra quem? Qualquer que seja a resposta, ela nunca atingirá o alvo exato, trazendo-nos satisfação completa. Há uma verdade parcial na noção de "choque de civilizações" atestada aqui -um testemunho exemplifica a surpresa do americano médio: "Como é possível que eles tenham tanto desapego a suas próprias vidas?". Não é o outro lado dessa surpresa o triste fato de que nós, em países do Primeiro Mundo, achamos cada vez mais difícil até imaginar uma causa pública ou universal pela qual sacrificar a própria vida? Ideologia hegemônica Quando, após os atentados, até mesmo o ministro das Relações Exteriores do Taleban disse que podia "sentir a dor" das crianças americanas, isso não foi uma confirmação do papel ideológico hegemônico dessa "frase registrada" de Bill Clinton? Além disso, a noção dos Estados Unidos como um porto seguro, é claro, é também uma fantasia: quando um nova-iorquino comentou sobre como, após os atentados, não é mais possível andar com segurança pelas ruas da cidade, a ironia disso foi que, bem antes dos ataques, as ruas de Nova York eram famosas pelo perigo de ser atacado ou, no mínimo, assaltado – se alguma mudança houve, o que esses atentados criaram foi um novo sentimento de solidariedade, com cenas de jovens afro-americanos ajudando um velho senhor judeu a atravessar a rua, cenas inimagináveis há alguns dias. Agora, nos dias imediatamente subsequentes aos ataques, é como se nós estivéssemos em um tempo único entre um evento traumático e o seu impacto simbólico, como naqueles momentos em que nos cortamos profundamente e a dor ainda não nos atingiu por completo -ainda está em aberto o modo como os eventos serão simbolizados, qual será sua eficácia simbólica, que atos eles serão chamados a justificar. Mesmo aqui, nestes momentos de incomparável tensão, essa associação não é automática e sim contingente. Já há os primeiros maus presságios; no dia após os ataques, eu recebi uma mensagem de um jornal que estava prestes a publicar um longo texto meu sobre Lênin, dizendo que haviam decidido adiar a publicação -haviam considerado inoportuno publicar um texto sobre Lênin imediatamente após os atentados. Será que isso não aponta para ominosas rearticulações ideológicas que se seguirão? Uma ilha incluída Nós ainda não sabemos que consequências, na economia, na ideologia, na política, na guerra, terá esse evento, mas uma coisa é certa: os EUA, que, até este momento, se acreditavam uma ilha excluída desse tipo de violência, testemunhando acontecimentos como esse pela distância segura da tela de TV, estão agora diretamente envolvidos. Então a alternativa é: vão os americanos decidir fortificar ainda mais sua "esfera" ou vão arriscar-se a sair dela? Ou os Estados Unidos vão persistir nessa atitude de "por que isso deveria acontecer a nós? Coisas assim não acontecem por aqui!", quem sabe até fortalecer essa atitude, levando a mais agressividade contra o Exterior ameaçador, em resumo: a uma atuação paranóica. Ou os Estados Unidos vão finalmente arriscar-se a atravessar a tela fantasmática que os separa do mundo exterior, aceitando a chegada deles ao mundo real, fazendo a passagem já por demais atrasada do "uma coisa assim não deveria acontecer por aqui!" para "uma coisa assim não deveria acontecer em lugar nenhum!". As "férias da história" dos EUA foram um embuste: a paz americana foi comprada por meio de catástrofes que aconteceram em outros lugares. Aí reside a verdadeira lição dos atentados: o único modo de assegurar que não acontecerão novamente é evitar que aconteçam em qualquer lugar. (Slavoj Zizek é filósofo esloveno, professor do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana, autor de "Eles Não Sabem O que Fazem" e "Um Mapa da Ideologia". Escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais!.) -Tradução de Victor Aiello Tsu –
Por Maria Luiza Carrilho Sardenberg
Altair,
Maravilhoso e oportuno post, como sp, aliás!
Mas, parece que sp que leio o Slavoj Zizek – não é sempre, exagero! – é como se o virtual fosse um negativo do real. Ele gosta muito de Hegel, né?
É como se o feio, o sujo e o malvado ficassem no tal Exterior ( com letra maiúscula ).
Meu filho me diz: "A cena virtual é tão violenta quanto a real". E diz isso questionando essa divisão exdrúxula.
Eu, mãe de classe média, com todas as limitações dessa condição, me apavoro com as incursões dele a pé, de madrugada numa cidade como São Paulo. Ele se refere à dose insuportável de violência que a mídia vomita sobre nós. Me tranquiliza dizendo que lá fora não é tão negro assim.
Eu, como boa amante de Spinoza, tendo a acreditar nisso. Pode haver mais amor do que ódio por aí.
"Tá tudo dominado!" Pelo poder mas também pela resistência!
bjs
Iza