Médicos da Humanidade

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Nietzsche encontrou nos filósofos e artistas uma função de cura da humanidade, do humano visto em outras perspectivas. Algo que transcende a dimensão da cotidianeidade em que vivemos a maior parte do tempo, mergulhados numa inconsciência cegante.

Paulo Mendes Campos, cronista brasileiro, encontra-se entre os médicos da humanidade. Leiam e constatem:

 

A Aurora

A aurora chegou vestida de cor-de-rosa, passou pela vidraça, passou através de minhas pálpebras, acordou meus olhos. Mas não me acordou a alma, que ficou dorme-dormindo, boba e semi-iluminada. Depois ela, a aurora, foi esvoaçar sobre os telhados, e era como se aquilo estivesse acontecendo no passado. Meus olhos ficaram expiando aquela aurora doida que esvoaçava e se adelgaçava e deixava nascer de seu ventre róseo os primeiros passarinhos matutinos.

Como são vivos e novos os passarinhos enxotados pela aurora! Como a alma de um homem é boba e vadia! Como a doçura  da preguiça de uma criatura que amanhece é infinita! Como `as vezes, ao surgir o dia, o homem se descobre miraculosamente perdoado de todos os crimes, crimes não, de todas as coisas feias que cometeu. Que nem cometeu, que deixou acontecer. Quem nos perdoa, não sabemos. Talvez seja assim: o sofrimento se junta, vai se juntando dentro da gente, lacerando, doendo, até que um dia a dor é tanta que nos pune. Então, ficamos perdoados. Puros, recomeçamos de alma nova, passada a limpo como um exercício de escola.

Voltando `a aurora, ela começou a sentir que morria. Ficou pálida. Um vento frio levantava as grinaldas da janela. As árvores começaram miraculosamente a dar folhas e frutos. Os pássaros se coloriram. Trens fumacentos avançaram sobre a cidade. Homens gritavam vendendo coisas. Ah, a aurora foi ficando palidíssima e morreu, morreu bem em cima dos meus olhos, no instante em que as duas últimas estrelinhas eram riscadas do show noturno. Amanhecia implacavelmente.

Aí chegou a vez do enterro da aurora. O coche foi levado por andorinhas de sobrecasaca, foi levado para muito longe, para muito além de um monte escuro, e desapareceu.

Fiquei só outra vez. Por um momento quis que ela voltasse. Depois resolvi ser novamente um homem, com duas pernas, dois braços, dez dedos práticos, com uma cabeça que deve decidir onde devo por os meus pés. É meio mórbido ficar lamentando indefinidamente a perda de uma aurora, mesmo uma aurora especial como aquela, capaz de perdoar-nos os pecados.

Ergui-me da cama resoluto como um rei e fui lavar a cara. Escovei os dentes com um máximo de alegria. Abençoado sejas, irmão dentifrício, que me refrescas a boca.

Em jejum, acendi como sempre o primeiro cigarro. Que me dá tosse. Não importa. Abençoado sejas, irmão fumo, irmã fumaça que sobes para o céu.

Deitei-me na cama de novo enquanto os cavalos dos poemas antigos traziam o Sol em atropelada brilhante. Vi-os fortes e louros irromper pelo céu onde tinha morrido de morte linda a aurora. Abençoado seja o Sol. Abençoado seja o dia. Abençoado seja o descanso. Abençoados sejam os pássaros diurnos e noturnos. Abençoadas sejam as criaturas de todo o mundo. Abençoado o fogo; a terra; o ar; a água. Abençoada seja a aurora. Que me perdoa de meus pecados.

 

Paulo Mendes Campos, em “O amor acaba – Crônicas Líricas e Existenciais” – Ed. Civilização Brasileira

 

Lindo de doer!!!!!!

Iza