Morte e Pintura: Alguns Quadros de Edvard Munch
Edvard Munch (Auto Retrato Com Cigarrilha)
Todo um imenso volume de história da arte poderia ser composto a partir da temática da morte. Episódica em alguns, a morte pode ser o grande tema nas mãos de outros. Este é o caso de Edvard Munch (1863-1944), pintor norueguês.
Notabilizado pelo quadro "O Grito", o pintor tem uma obra extensa e muito dela retrata seus dramas internos. Munch foi assolado pela morte desde a mais tenra infância. Primeiro, a morte da mãe quando tinha 5 anos e, depois, a mnorte da irmã querida por tuberculose quando ela tinha 15 anos de idade. Como o próprio Munch disse certa feita ao definir sua obra "a doença, a loucura e a morte foram os anjos negros que velavam meu berço e que me acompanharam por toda a vida".
Nesta pintura (mãe morta e criança) temos o corpo da mulher morta na cama praticamente transparente sinalizando com clareza que não possui mais vida. O tom esverdeado da parede "abraça" os personagens presentes na pintura como que expressando a doença mortal que agora faz parte também de todos. A garotinha expressa seu espanto e medo diante da morte. Tapa os ouvidos numa atitude negadora e ao mesmo tempo parece clamar por uma ajuda que não vem dos adultos. Ela está inapelavelmente sozinha diante da morte da mãe pois os adultos apressados se ocupam das intercorrências mais práticas e imediatas da morte. Munch parece nos cobrar aquilo que as pessoas não estão fazendo na pintura. Quase que somos forçados a entrar no quadro e abraçar a menina!
Em "A Criança Doente" estamos agora diante da garotinha anterior só que com 15 anos. Ela jaz vulnerável sofrendo de tuberculose aos 15 anos. Aqui Munch parece nos levar à pessoa que ajoelhada ao lado da menina sofre intensamente a expectativa de que a qualquer momento a morte chegará definitivamente.\A menina tem o olhar distante, parece já entregue e indiferente ao sofrimento de quem vai ao seu lado.O olhar perdido anseia a paz que só se encontra no fim de um horizonte agora alcançável. Quando olho essa pintura imagino o sofrimento de tantas pessoas que estão agora vivenciando as suas perdas e do quanto muitas vezes somos impotentes e trazer algum conforto nesse momento crucial. Novamente, o teor da solidão diante do sofrimento é realçado
Já em "Ao leito de Morte" nos deparamos com os comportamentos dos enlutados. O morto nos é mostrado deitado sem feições, propositadamente colocado de costas. O quarto tem uma iluminação precária por velas que estão dispostas fora da nossa visão pois só vemos as sombras projetadas nas paredes. Somos forçados a olhar os semblantes pouco definidos das pessoas mas que nos mostram suas emoções básicas que parecem oscilar da resignação passando por profunda tristeza e indo até a súplica pelo impossível, aquele desejo mágico e infantil de que o morto retorne a vida. Mais no canto direito do quadro existe apenas uma pessoa que nos fita diretamente. Ela nos diz com todas as letras: A Morte virá para todos, inclusive para você que nos vê em tanto sofrimento. A opacidade maior do rosto que contorna olhos mais humanos dá um ar fantasmagórico a figura como se ela mesma fosse a morte a nos confrontar.
Aqui temos "Morte no Ambulatório". .A pessoa desenganada e às portas da morte está sentada de costas na pintura. Temos as pessoas que expressam dor e sofrimento dotadas de uma palidez esverdeada que parece identificar a todos com a doença que está matando o ente amado, afinal, todos morremos um pouco quando perdemos alguém querido. A attiude contemplativa do médicos mostra que ele perdeu as esperanças, apenas observa. Munch é aquele personagem mais isolado no canto esquerdo. Não encontra consolo algum nas redes de solidariedade da família pois parece ter a sensação de que nada poderá servir de lenitivo diante de dor tão extrema.
Assim, Munch nos deixa o legado de sua experiência com a morte. No fim as contas, os indivíduos não são ilhotas isoladas pois grande parte do que vivemos também é do mundo e da humanidade. Numa análise histórica mais "seca" poderíamos afirmar que a dor de Munch é a dor típica da família burguesa da Europa Ocidental do fim do século XIX, sem a referência das redes sociais extensas e comunitárias.
A dor que se sentia em público agora só pode ser vivida no universo do espaço doméstico. As dores e os ritos tornaram-se expressões mais privadas e por isso mais solitárias. No entanto, se na época de Munch essa expressão tinha a marca do novo, hoje parece ser a regra de uma sociedade cada vez mais individualizada pelas marcas da mercantilização, da exaltação do cidadão consumidor, do indivíduo cada vez mais restrito a si mesmo.
"O Grito" de Munch pode ser então o recado estrondoso de que, seja na vida, seja na morte, seja na vivência de nossas perdas, precisamos com urgência sair das amarras da solidão!
Por jacqueline abrantes gadelha
Caro amigo,
Enquanto penso na sua ideia de produzir um texto sobre "cenas de morte na literatura brasileira", compartilho também com a nossa RHS o comentário lá do seu blog.
Lembrei de um trecho do livro Manuelzão e Miguilim de Guimarães Rosa e fui revisitá-lo:
“O Dito, morto, era a mesma coisa que quando vivo, Miguilim pegou na mãozinha morta dele… Estavam lavando o corpo do Dito, na bacia grande. Mãe segurava com jeito o pezinho machucado doente, como caso pudesse doer ainda no Dito, se o pé batesse na beira da bacia. O carinho da mão de Mãe segurando aquele pezinho do Dito era a coisa mais forte neste mundo – “olha os cabelos bonitos dele, o narizinho”…Miguilim não agüentava ficar ali…deitou na cama, tapou os ouvidos com as mãos e apertou os olhos no travesseiro – precisava de chorar, toda-a-vida, para não ficar sozinho.”
Nas telas de Munch, assim como no texto, a vida parece querer gritar aos nossos sentidos. Lembra-nos que ainda estão aqui guardadas as imagens dos que se foram; elas saltam de dentro de nós. Uma possível incompletude das cenas nos desafiando a entrar nas telas? Ou seria no nosso próprio mundo esquecido?
A cada pessoa querida que morre, busco palavras e imagens que deixei escapar pelo caminho. Procuro flores nos concretos, tento ver um pedacinho de azul no calor seco e silencioso das pedras. Diante de telas inacabadas sem cenário para contemplar, sentidos procuram adequar-se, se encaixar em algum lugar. A morte desafia a ser amparo, a ter a mão aquecida na hora da despedida, a oferecer o abraço aos que ficam. Ou a silenciar junto. Partilhar dor em silêncio. É preciso tentar ver com outros olhos onde está o pedacinho de vida que se anuncia na morte, em que cantinho da alma se esconde o amor pelo fim, que pedacinhos de nós se vão junto àquele corpo que vestimos. No escuro da alma, perseguir as centelhas de luz… do olhar que se apagou, do sorriso que se desfez. Escutar no silêncio o que nenhuma palavra é capaz de dizer e assim decifrar o mundo do outro que retorna dentro de nós. Sentir a vida acontecendo, se anunciando, como na música de Bach. Em meio à dor da perda, à voz que se foi e à incerteza do que virá, uma certeza: a vida grita!
Adélia Prado, em um de seus poemas, faz uma prece: “Meu Deus, me cura de ser grande”!
Acho que as crianças vêem melhor. Elas mantêm o espanto diante de tudo e a alegria, mesmo na dor. Guimarães Rosa descreve isso nas últimas palavras do seu personagem Dito: –“Vou ensinar o que agorinha eu sei, demais: é que a gente pode ficar sempre alegre, alegre, mesmo com toda coisa ruim que acontece acontecendo. A gente deve de poder ficar então mais alegre, mais alegre, por dentro!”
Belíssimo post, Erasmo!
Jacqueline Abrantes, enfermeira da Estratégia Saúde da Família, Natal-RN, cuidadora da RHS