“O maior desafio do Sistema Único de Saúde hoje, no Brasil, é político”

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Compartilho entrevista de nosso grande mestre baiano Jairnilson Paim publicada há algumas semanas na IHU – REVISTA DO INSTITUTO HUMANITAS DA UNISINOS – 376 – Ano XI – 17.10.2011

O problema posto com grande clareza!

"Ou se vai à luta para poder modificar com relação de forças no sentido de um sistema de saúde público e digno para todos…" ou estamos aceitando a desigualdade como regra do jogo na Saúde…
 

“O maior desafio do Sistema Único de Saúde hoje, no Brasil, é político”

Jairnilson Paim define o SUS como um sistema que tem como característica básica o fato de ter sido criado a partir de um movimento da sociedade civil e não do Estado, de governo ou de partido

Por: Graziela Wolfart

“É um sistema que foi institucionalizado a partir da Constituição de 1988, resultante de um amplo movimento social, que envolveu estudantes, profissionais de saúde, setores populares, professores e pesquisadores, defendendo o direito à saúde”. É dessa forma que o professor e médico Jairnilson Paim define o Sistema Único de Saúde – SUS. Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, Paim menciona que “há uma particularidade hoje de que ninguém no Brasil, em público, é contra o SUS. Todo mundo hoje é a favor do SUS e isso é um paradoxo, porque é um SUS que todo mundo é a favor, mas que tem tanta dificuldade de ser desenvolvido”. E completa: “hoje oferecemos no SUS desde vacinas até transplantes. Temos toda uma gama de serviços de saúde, além da assistência médica. Temos vigilância epidemiológica, vigilância sanitária, temos um conjunto de bancos de sangue com qualidade de atendimento, toda a parte de formação de recursos humanos, pesquisas em ciência e tecnologia. No entanto, esse sistema não pode fazer milagres enquanto for restringido em termos de financiamento e com os problemas de gestão”.

Jairnilson Silva Paim possui graduação e mestrado em Medicina pela Universidade Federal da Bahia. Atualmente é professor no Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia e coordenador de Grupo de Pesquisa em Planificação, Gestão e Avaliação em Saúde.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que é o SUS, como o senhor o define?

Jairnilson Paim – É um sistema que foi institucionalizado a partir da Constituição de 1988, resultante de um amplo movimento social, que envolveu estudantes, profissionais de saúde, setores populares, professores e pesquisadores, defendendo o direito à saúde. A partir deste movimento social se conseguiu incluir na Constituição um conjunto de princípios e diretrizes para a organização de um sistema de saúde. Da década de 1990 em diante, foi possível ir implantando de forma progressiva essa nova organização do sistema de serviços de saúde no Brasil. Nesse sistema, dentre os princípios que mais se destacam, encontram-se a universalidade – saúde como um direito de todos, com acesso universal -, a igualdade – dar serviços iguais para todos -, a participação social e a descentralização. Além desses grandes princípios, temos outra orientação, que é a integralidade. Então, é um sistema que tem como característica básica o fato de ter sido criado a partir de um movimento da sociedade civil e não do Estado, de governo ou de partido.

 

IHU On-Line – O que o SUS ainda não faz e que deveria fazer para que se alcance uma saúde pública de qualidade?

Jairnilson Paim – Qualquer sistema de saúde é montado em cima de, pelos menos, cinco componentes: a infraestrutura, onde temos um conjunto de estabelecimentos, equipamentos, força de trabalho, ciência e tecnologia, que permitem, portanto, a prestação dos serviços à população; o financiamento, que é o que faz manter e ampliar essa infraestrutura, pagar pessoal, comprar medicamentos e material de consumo; a gestão, que diz respeito para onde se vai conduzir esse sistema, se vai ter um caráter mais público ou se vai ficar refém do setor privado, se será um sistema com uma gestão participativa, descentralizada, ou se é piramidal, vertical; a organização dos serviços, no sentido de como vamos estruturar esse sistema, se será em redes, se terá relações entre a atenção básica e a atenção especializada, como se garantirá a referência, como se regulará o atendimento (através de uma central de consultas ou de internações); e um quinto componente, que seria um dos mais centrais por ser aquele que a população mais “sente na pele”, é o modelo de atenção, ou seja, como vamos combinar um conjunto de tecnologias para resolver os problemas das pessoas, mas, sobretudo, tendo um cuidado para que elas se sintam acolhidas no serviço de saúde. Em todos esses cinco componentes o SUS ainda tem problemas. Mas na conjuntura atual, a questão do financiamento é central. Se não resolvermos o problema do financiamento do Sistema Único de Saúde, não haverá como fazer milagres para atender a todos, com todos os serviços que a população merece.

 

IHU On-Line – O senhor afirma que há vários tipos de SUS dentro do SUS. Que tipos são esses?

Jairnilson Paim – Esses vários tipos de SUS dentro do SUS representam concepções tanto dos dirigentes, quanto da mídia ou dos próprios profissionais da saúde e, por que não dizer, da população. Na realidade, são representações sociais acerca desse sistema que estamos tratando aqui. Portanto, tem um SUS que está na lei, na Constituição, na Lei Orgânica da Saúde, e que ainda não é o sistema que efetivamente encontramos “na prática”; temos um SUS que eu chamo “um SUS pobre para pobres”, que é um sistema onde faltam recursos e sobram filas, as pessoas não são bem atendidas e muitos acham que é para ser assim mesmo, porque como é um sistema que ainda não é para todos, os pobres, ao serem atendidos, ainda ficam agradecidos, achando que receberam um bom atendimento, e para esse tipo de concepção qualquer coisa para pobre serve e ponto. Esse sistema não é o que foi concebido nem na legislação, nem pelo movimento da reforma sanitária. Tem também o SUS que está na cabeça dos gestores, que eu chamo de “o SUS real”, em que a saúde da economia é mais importante que a saúde do povo. Na hora em que se vai designar uma quantidade de recursos, se pensa mais no orçamento e no equilíbrio financeiro do que na saúde da população. Esse é o SUS refém da área econômica de cada governo que tem passado pelo Brasil. Esse SUS também é um “SUS Real” – e eu faço o trocadilho com a realidade e com o nome da moeda brasileira –, dos conchavos políticos, das indicações para cargos de comissão, para cargos de confiança, em que há um uso da saúde como moeda de troca entre partidos e entre governantes. E quando se faz alguma crítica a esse SUS se é considerado um sonhador, porque a realidade é assim mesma: deve ser garantida a governabilidade, etc. E há o SUS que foi gerado pelo movimento da reforma sanitária, que ainda não foi inteiramente implantado e se encontra ameaçado numa encruzilhada sobre a qual a sociedade brasileira terá que debater mais para saber qual o sistema de saúde que ela efetivamente quer. Essas são concepções acerca do SUS. E como essas ideias que estão na cabeça das pessoas influenciam na hora de tomar decisões, há uma disputa simbólica entre os vários atores sociais sobre qual é o SUS que se defende. Há uma particularidade hoje de que ninguém no Brasil, em público, é contra o SUS. Todo mundo hoje é a favor do SUS e isso é um paradoxo, porque é um SUS que todo mundo é a favor, mas que tem tanta dificuldade de ser desenvolvido.

 

IHU On-Line – Como era a área da saúde no Brasil antes da criação e implementação do SUS? O que mais ele mudou?

Jairnilson Paim – Isso é importante, porque nós só podemos examinar um sistema, no caso do SUS em particular, em termos de comparação, analisando como era antes de ser implantado. Ou também se pode comparar o nosso sistema com outros sistemas de saúde do mundo. Essa é uma via inteligente de perceber até mesmo o que conseguimos avançar no sistema único de saúde. Quando tínhamos o Instituto de Assistência Médica da Previdência Social – Inamps e antes dele o Instituto Nacional de Previdência Social – INPS, e antes desse o chamado Instituto de Aposentadorias de Pensões dos Comerciários, Bancários e Marítimos, só quem tinha acesso a serviços de saúde, à assistência médica – que não é igual a direito a saúde – eram os trabalhadores urbanos que tivessem vínculo formal com o mercado de trabalho. Se, naquela época, a maior parte da população vivia na área rural ou nas cidades do interior e a população urbana somente é quem tinha acesso, já se vê por aí o quanto era excludente o sistema de saúde brasileiro. Além disso, mesmo as pessoas que morassem em área urbana, mas fossem, por exemplo, empregadas domésticas, ou que estivessem desempregadas, ou ainda que trabalhassem no mercado informal, não tinham acesso aos serviços de saúde. A única forma para que algumas dessas pessoas pudessem ter acesso era ou numa emergência ou num serviço filantrópico, numa Santa Casa, ou num hospital beneficente. Quando eu comecei a trabalhar na área de saúde como médico, um simples exame de eletrocardiograma exigia que a pessoa fosse atendida no Hospital Universitário e fizesse uma consulta para solicitar esse exame. Esse é um simples exemplo do quanto se avançou em termos de acesso de oferta de serviços. Hoje, oferecemos no SUS desde vacinas até transplantes. Temos toda uma gama de serviços de saúde, além da assistência médica. Temos vigilância epidemiológica, vigilância sanitária, temos um conjunto de bancos de sangue com qualidade de atendimento, toda a parte de formação de recursos humanos, pesquisas em ciência e tecnologia. No entanto, esse sistema não pode fazer milagres enquanto for restringido em termos de financiamento e com os problemas de gestão a que me referi anteriormente.

 

IHU On-Line – Como a sociedade brasileira vê o SUS?

Jairnilson Paim – A maneira como a sociedade vê o SUS é aquela com que as classes dominantes veem o Sistema Único de Saúde. Essa ideologia presente na sociedade está sendo produzida constantemente pela mídia. A mídia aproveita as deficiências do SUS para fazer uma ampla difusão do que está nas aparências. É evidente que se você chega num hospital público, numa emergência, a mídia não está inventando, nem mentindo em destacar a dificuldade do acesso das pessoas naquela emergência, as macas e as pessoas deitadas no corredor, no chão. No entanto, o que a mídia faz é mostrar o que aparece. Ela não está muito interessada em perguntar por que isso ocorre e por que aquele fato está sendo realizado e produzido. Ela não quer saber dos elementos que eu coloquei antes, que compõem o sistema de saúde. Ela não quer saber por que o financiamento é deficitário em relação ao SUS. Ela não quer saber que, em um ano, o governo federal gasta quase a metade do seu orçamento para pagar juros da dívida em vez de pagar as necessidades da área social. A mídia não tematiza isso, porque ela é vinculada aos interesses dominantes da sociedade, que ganham e se ampliam com esse tipo de modelo econômico. A explicação das razões pelas quais estamos com esses problemas no SUS não aparece na mídia. O que aparece é a falta disso e daquilo, a falta de equipamentos, de pessoal, de medicamentos. Nós, da universidade, temos a obrigação de ir além da aparência, por meio da ciência. Quando fazemos pesquisas, produzimos conhecimento que não é aquele do senso comum com o qual a mídia trabalha. Não estou fazendo uma crítica à mídia. São enfoques diferentes que nós, da universidade, temos ao examinar o SUS e o enfoque que a mídia precisa para vender imagem e atender aqueles que patrocinam os seus programas. Então, o que a sociedade discute em relação ao SUS não é o SUS em toda a sua complexidade, mas o SUS fabricado por essas imagens e por esses símbolos que os órgãos de comunicação realizam. Tem uma frase muito comum que diz: good news, no news, ou seja, boas notícias não são notícia. Segundo o IBGE, mais de 90% das pessoas que procuraram o serviço de saúde nas últimas semanas foram atendidas. Isso garante que temos um sistema de saúde bastante acessível, com a cobertura muito grande. Mas se a mídia fizer uma entrevista, ela não vai pegar os 90% que foram atendidos; vai pegar exatamente os 5 ou 10% que não foram atendidos.

 

IHU On-Line – Os princípios de equidade e universalidade são cumpridos pelo SUS efetivamente?

Jairnilson Paim – O princípio da universalidade está garantido hoje na Constituição, na Lei Orgânica, que garante o sistema para todos. O SUS não segmenta dizendo que quem tem plano de saúde não pode ser atendimento pelo sistema público de saúde, como em alguns países da América Latina. No Brasil, o SUS é para todos. Se alguns têm plano de saúde porque podem pagar é uma opção desses 26% da população. Até mesmo para essas pessoas que têm plano de saúde, quando os planos têm obstáculos, ou quando são atendidas na emergência, elas vão para o SUS; quando precisam de vacina, vão para o SUS. O sistema de saúde brasileiro é universal. Essa é uma característica fundamental. No entanto, quando se tem carência ou restrição de recursos, essa universalidade vai ficar mais limitada. Esse é um ponto central para diferenciarmos o nosso sistema de saúde com outros do mundo. O outro princípio, que é o da equidade, não está no capítulo de saúde da Constituição, nem está na Lei Orgânica da Saúde número 8080/90. O princípio da equidade é introduzido no Sistema Único de Saúde através de normas operacionais com as quais o SUS foi implantado. Não conheço nenhum país do mundo que, a partir da equidade, se chegasse à universalidade. Mas podemos ter um sistema de saúde universal, como o brasileiro, e na medida em que ele vai avançando e organizando suas ações com base em critérios epidemiológicos para poder alocar recursos, vai alcançando uma equidade no sentido de tratar igualmente aqueles que são desiguais.

 

IHU On-Line – Quais são os maiores desafios que o SUS enfrenta? O financiamento é o maior deles?

Jairnilson Paim – O maior desafio do Sistema Único de Saúde hoje, no Brasil, é político, porque garantir financiamento para um sistema, que tem que passar por um conjunto de negociações e de interesses no Congresso Nacional, no Executivo, no pacto de federação com estados, municípios, União, implica em uma decisão essencialmente política. É preciso redefinir as relações público-privadas. O SUS sustenta muitos dos serviços do setor privado, particularmente os planos de saúde. Os tratamentos mais caros vão para o SUS e não para os planos de saúde que são pagos. Ou ainda se formos considerar que no sistema de saúde, na sua relação público/privado, o estado brasileiro faz renúncia fiscal, ou seja, deixa de recolher impostos que as pessoas, as famílias ou as empresas deveriam fazê-lo. Com isso está dando subsídios ao setor privado para que ele venha crescer. Essa relação é eminentemente política e, portanto, vai precisar de um acúmulo de forças para modificar essa situação que não é favorável ao SUS. Se temos como perspectiva do SUS a proposta de avanço da universalidade para a equidade, e se queremos reduzir as desigualdades, precisamos modificar a distribuição de renda. Esses exemplos são ilustrações de que um desafio muito grande do SUS é político. E se quisermos mudar o modelo de atenção para garantir a integralidade e não ser um sistema voltado exclusivamente para hospitais e tecnologias de alta densidade de capital, mas garantir direito à saúde pela integralidade da atenção, essa também é uma decisão política que vai envolver profissionais de saúde que foram formados com uma determinada lógica e que terão que redefinir as lógicas e racionalidades que orientam seus processos de trabalho. A sociedade precisa saber dessas contradições e entendimentos no sentido de se mobilizar para garantir seu direito à saúde.

 

IHU On-Line – Qual a importância dos movimentos sociais para a luta pelo direito à saúde e para a consolidação do SUS?

Jairnilson Paim – O SUS nasceu da sociedade civil e conseguiu atravessar o Estado, seja pela constituinte, seja depois pelo parlamento brasileiro. Alguns fatos que ocorrem no mundo e que também repercutiram no Brasil levaram a certo retrocesso, a certa desmobilização dos movimentos sociais na última década do século XX e no início deste século XXI. No Brasil, o fato de, a partir de 2003, ter sido eleito um presidente da República que tinha participado dos movimentos da classe trabalhadora, que tinha fundado um partido que apresentava um projeto de ética na política, um partido que propunha um conjunto de mudanças na sociedade, criou uma expectativa de que as coisas aconteceriam pelo governo, que a sociedade não precisava se mobilizar tanto porque um companheiro seu já estava na gestão para realizar as mudanças necessárias. Com oito anos de Lula já se verificou que aquelas expectativas não foram bem fundamentadas. Talvez seja, hoje, o momento em que, no mundo todo, as sociedades estão se movimentando e no Brasil as pessoas que querem defender o seu direito à saúde tenham outra forma de investir na defesa desse direito que não seja apenas de braços cruzados esperando que o governo faça. Ou se vai à luta para poder modificar com relação de forças no sentido de um sistema de saúde público e digno para todos, ou vamos pegar apenas as migalhas do que sobrarem dos orçamentos que não foram pagos aos bancos. Com isso manteremos um SUS pobre, para pobres, e complementar à iniciativa privada, e não o contrário.

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