SAÚDE É QUESTÃO DE CULTURA E CULTURA É QUESTÃO DE SAÚDE

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ESPECIAL NCCS 1: SAÚDE É QUESTÃO DE CULTURA E CULTURA É QUESTÃO DE SAÚDE

Por Vitor Pordeus

Esta é a primeira parte do especial que preparamos sobre o Núcleo de Cultura Ciência e Saúde e sobre a Universidade Popular de Arte e Ciência, que são grandes exemplos de aplicação prática da arte na transformação verdadeira da saúde, da recondução do homem à sua condição de humano. O trabalho destes artecientistas do Rio de Janeiro serve de modelo para o que conduzimos no NARIS e na Trupe da Pro-cura, e há muito o que aprender com o que esta pesquisa tem a dizer e com o que sua força dionisíaca nos permite apreender para além do campo da razão. É necessário dançar e amar também, só assim chegaremos ao homem.

Durante as próximas semanas, serão publicados alguns textos acerca dos princípios teóricos, das experiências e da beleza que está sendo fomentada em Engenho de Dentro e nas praças públicas por estes saltimbancos e seus sonhos-planos tão inéditos quanto viáveis. Esta série de publicações é um convite para conhecer melhor este trabalho, é um convite para dançar, e uma preparação anímica para o II Congresso da Universidade Popular de Arte e Ciência, que ocorrerá em julho, no Rio de Janeiro.

Alquimia subversiva convertendo ouro em nosso pétreo peito! Deixe-se transformar em carne novamente, porque tudo é carnaval e tudo tem ânima! Confira e sinta-se livre para vir dançar conosco! Evoé!

A medicina é uma das mais profundas vocações da humanidade pois trata da cura, da regeneração, da superação, do aprofundamento do processo de desenvolvimento de um ser humano, sua capacidade de viver com saúde, no máximo de sua aptidão espiritual e corporal.

Minha experiência com a prática médica em que fui treinado foi extremamente traumática, para resumir uma longa história meu avô foi vítima de erro médico em meu próprio hospital-escola o que me forçou a renunciar à medicina das universidades oficiais, cartesiana, mecanicista, farmacêutica e artificializada, o caminho que me foi colocado pelo destino foi a ciência, iniciei projetos de pesquisa no campo primeiro da hematologia depois da imunologia que me levaram a conhecer o Mestre Nelson Vaz da Imunologia Brasileira e descobrir que a morte do meu avô faz parte de um esquema internacional de má prática médica e científica que engessa as mentes e os corpos em modos completamente ineficientes e criminosos de cuidado à saúde humana, modelo este que produz barbaridades todos os dias nos lugares onde se praticam a pior e a melhor medicina lado a lado, o erro médico se torna um dos mais graves e frequentes do nosso tempo. Nelson me fez entender que se trata de um desafio científico, mais conceitual e teórico até do que outra coisa, de uma substituição de paradigmas, nomeadamente dos paradigmas cartesianos citados acima por visões de mundo integradoras, com uma biologia verdadeiramente biológica, viva, natural, que trate do fenômeno vivo sem mata-lo para dissecar, nem torturar até a morte da matéria viva em pesquisas que envolvem de amebas a seres humanos. Ciência esta que está alinhada com uma cultura de toda uma sociedade internacional, gerada e exportada das metrópoles europeias, amplificadas e aprofundadas nos Estados Unidos, e que invade a todos através do cinema latifundiário-imperialista e seus subprodutos como celebridades de televisão que queriam mesmo é estar em Hollywood, propagando e contaminando a milhões de brasileiros por segundo os valores mais baixos da colonização da alma: futilidade, mediocridade, competição, farinha pouca meu pirão primeiro, gerando hordas de seres humanos bestializados que passam a literalmente atacar a saúde, a integridade, uns dos outros, não mais importando se você atropela alguém porque tem pressa em entrar no Shopping, que esse Shopping suntuoso e nababesco explore seus empregados até a última gota de sangue, exauridos de qualquer respeito a sua saúde e a saúde de sua família, produzindo comunidades inteiras exauridas de tanto trabalho, pobres, miseráveis porque trabalharam a vida inteira para engordar algum patrão capitalista e racista, que explora os povos diferentes daqueles da Casa Grande como escravos, invadindo os espaços comuns com obras e ações que não interessam a ninguém além dos grandes patrões que acumulam lucros cada vez mais exorbitantes; enquanto nós cidadãos vamos assistindo a deterioração progressiva da saúde, das relações entre as pessoas, e as relações com nosso meio-ambiente que vai tornando-se algo como o pós-apocalipse travestido de sonho olímpico.

Os ‘determinantes sócio-econômicos da saúde’ acabaram de ganhar conferência internacional, no hotel chic de Copacabana, com Ministros de Estado de várias nações. Enquanto dali a 40 kilomêtros os moradores da favela Cabeça de Porco no subúrbio carioca do Encantado estão atolados na mais porca miséria, revezando seu tempo de vida entre o vício em crack, o funk carioca “Vem para o Cabaré!”, as brigas pelos motivos mais tolos com seus semelhantes, as novelas da Globo, os biscates, as sucatas, os ratos, o adoecimento, as febres, os vermes, os sangramentos, a tuberculose, a negligência, o abandono de si próprio, a desesperança, a ausência total de perspectiva, a fome.

Como curar numa era científica? O que é saúde? Como transformar os “determinantes sócio-econômicos”, a pobreza e a miséria, de uma sociedade complexa como a carioca, uma megalópole monstruosamente contrastante, com o mais sublime e o mais monstruoso vivendo juntos.

Desafio de tamanha complexidade não poderia sequer ser abordado se tivéssemos que confiar na experiência de uma só pessoa, se não tivéssemos essa capacidade de nomear e fazer distinções, de contar histórias, de compartilhar o conhecimento, de criar e recriar o mundo a nossa volta. O discurso é de Paulo Freire, e de alguns outros cientistas, pensadores, indivíduos que devotaram boa parte do tempo, e às vezes, sua vida inteira a responder perguntas grandes, sobre nossa natureza, nosso mundo, nossa vida. Mestres ancestrais e atuais como Nise da Silveira, Baruch de Espinoza, nossos queridos mestres vivos a atuantes Amir Haddad, Nelson Vaz e Humberto Maturana. Diferentes cientistas, pesquisadores, artistas que apontam caminhos mais interessantes, saudáveis, possíveis e inéditos, difíceis mas colocam de forma clara e concreta a liberdade humana, o exercício do conhecimento, da experimentação, do desenvolvimento, da cura de uma era científica, onde apesar de tanto descalabro e barbaridade, somos capazes de solucionar tanta doença, essa é a responsabilidade de nós médicos, curandeiros, pajés, artistas, atores, professores indivíduos dedicados à curar as pessoas, os grupos e as sociedades quando necessário.

Hoje temos observado o verdadeiro comportamento auto-destrutivo, inconsequente, irresponsável, competitivo, doente dos seres humanos que deviam estar vivendo em sociedade. Isso porque são comandados por aparelhos de televisão e salas de cinema controladas pelos grandes grupos capitalistas que irradiam seus padrões de comportamento e consumo compulsivo através da mimesis produzida pelos atores que sem qualquer consciência de seu ethos, sua função, entregam os sonhos, os mitos, a identidade profunda de nosso povo e nossa nação ao patrão que pagar mais caro, formam-se assim as mídias de massa, o ópio do povo de nosso tempo, o pão e o circo dos espetáculos midiáticos e dos mega-eventos, destroçando qualquer vestígio de cultura originária, identidade, ancestralidade, auto-estima do povo brasileiro, daqueles que sofrem na própria perspectiva de vida, no direito a saúde, porque são convencidos por um impressionante esquema que envolve indústrias inteiras a viver subservientes ao colonizador; acreditando, portanto, que o povo brasileiro é inferior, mestiço, sem pureza, negroide, com traços grosseiros, com um folclore grosseiro, com uma cultura popular que parece coisa de pobre, sem a sofisticação e os efeitos tecnológicos de Madonna e Britney Spears.

Meus amigos, estamos é sendo completamente dominados pela colonização cultural capitalista que devora os cérebros e os corações dos artistas que iludidos pelos valores do mercado incorporam a relação comercial em algo que deveria ser sagrado, de importância estratégica, com enormes impactos na própria saúde do povo, na educação, na cultura que é a identidade de um povo, a memória coletiva do Brasil, da nação mestiça que se constituiu à revelia e apesar do projeto colonialista que reinou e continua reinando em nossas terras, deixando marcas indeléveis em nosso caráter, que devidamente refletidas e significadas, podem ser superadas e nos fortalecer enquanto povo guerreiro e resistente, que precisa superar os desafios da era científica, da nossa vida e da sobrevivência de nossos descendentes e a honrar a memória de nossos ancestrais. Esse passo pode, precisa e está sendo dado pelos setores mais esclarecidos e corajosos da sociedade brasileira, pelos resistentes da cultura pública, da saúde pública, da ciência pública mas que ainda padece graças à mediocridade do projeto colonizatório nacional, por isso é preciso mobilizar a todos, recuperar a memória, injetar saúde e vitalidade através da cultura de nossos ancestrais, que recontam nossas lutas e nos organiza de forma mais inteligente e eficiente frente aos desafios do mundo. Só temos a ganhar, ganhar em saúde, em ordem social, em garantia de direitos pela luta de cidadãos responsáveis e atentos à coisa pública, participando através de programas de gestão participativa, opinando no orçamento de sua comunidade e seu município, se qualificando com estratégias de educação popular, cultural, problematizadora, libertária, para que o debate não se perca em questões improdutivas e resgatando o imenso, complexo, riquíssimo patrimônio cultural, histórico, antropológico, científico de nosso país, chamado Brasil, terra misteriosa, das forças da natureza, de todos os povos da terra reunidos num povo resistente, alegre, afetuoso, que sabe de onde veio e para onde vai.

Para tanto, é necessário seguir efetuando as mudanças condutuais na maneira como educamos, atendemos, administramos, cuidamos dos doentes, cuidamos das pessoas, gerimos o patrimônio público para que a saúde se torne verdadeiramente possível e que possamos viver efetivamente com qualidade de vida, liberdade, amorosidade e esperança. Hoje, como dizia o Paulo Freire, temos esperança porque lutamos, e nós latino americanos, brasileiros, a quinta economia do mundo que convive com a porca miséria, desafiando a inteligência, a criatividade e a capacidade de lutar dos homens e mulheres desse continente, desse país, dessa cidade, dessa comunidade.
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Texto original cedido do blog Imanente Mente, de Vitor Pordeus