Procuradores afirmam inconstitucionalidade da gestão dos serviços de saúde pelas Organizações Sociais
Raquel Júnia – Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) escreve: Desvio de recursos públicos e desrespeito estão entre as ilegalidades praticadas por OS.
Além de usuários, trabalhadores e pesquisadores, há também servidores públicos do campo jurídico que defendem hoje o SUS conforme está previsto na Constituição brasileira, como um sistema público e universal, no qual os serviços privados devem ter apenas função complementar. Para os participantes da mesa "Lutas contra a privatização da saúde no campo jurídico", realizada durante o Seminário da Frente Nacional contra Privatização da Saúde, está claro que propostas como a transferência da gestão dos serviços de saúde para Organizações Sociais fogem, e muito, do texto constitucional. De acordo com o sub-procurador geral da República, Oswaldo Silva, essa percepção é compartilhada também por outros colegas dele, tanto do Ministério Público Federal, quanto de Ministérios Públicos estaduais. "A nossa missão institucional é defender a Constituição e na defesa da Constituição, a grande maioria dos membros do Ministério Público se posiciona contrária à privatização da saúde. Como somos independentes, não existe um cacique a mandar nos procuradores, essa independência nos possibilita a atuar como advogados da sociedade", garante. Também participaram da mesa a auditora do Tribunal de Contas da União (TCU) Lucieni Silva, o procurador-chefe do Ministério Público do Trabalho da Paraíba, Eduardo Varandas, e a vereadora de Maceió Heloísa Helena (PSOL).
Segundo Oswaldo, a maioria dos procuradores da República é contra a transferência da gestão dos serviços públicos para as Organizações Sociais (OSs). "Apesar de nosso anterior Procurador Geral da República ter se manifestado quase que a favor dessa terceirização, o corpo dos procuradores é contra", afirma. Ele cita a criação pelos procuradores de uma Comissão Permanente de Defesa da Saúde (Copeds), que faz parte do Grupo Nacional de Direitos Humanos (GNDH) ligado ao Conselho Nacional de Procuradores Gerais do Ministério Público dos Estados e da União (CNPG). Oswaldo acrescenta que a Comissão criou uma série de enunciados para orientar a atuação dos seus pares – cerca de mil procuradores espalhados por todos os estados – no que diz respeito às terceirizações nos serviços públicos de saúde.
Já no primeiro enunciado, os procuradores afirmam que "a saúde pública deve ser exercida diretamente pela administração direta, devendo o Ministério Público promover medidas para garantir esta diretriz constitucional, inclusive o ajuizamento de ações civis públicas". No segundo enunciado, é reforçado o rechaço contra a transferência da gestão dos serviços para as OS. "Não é possível a transferência integral da gestão e da execução das ações e serviços de saúde do Primeiro Setor (Estado) para pessoas jurídicas de direito privado, como as Organizações Sociais (OS), as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), ou qualquer outra entidade do Terceiro Setor, pois a saúde é dever do Estado necessitando ser promovida mediante políticas públicas, devendo a iniciativa privada participar do Sistema Único de Saúde (SUS) apenas em caráter complementar".
Para Oswaldo, fica claro nos enunciados o significado da complementaridade do setor privado na saúde, atualmente bastante distorcida com os processos de transferência da gestão para as Organizações Sociais. De acordo com o enunciado três, a complementaridade "exige que o gestor demonstre impossibilidade fática do Estado garantir diretamente a cobertura assistencial à população de determinada área, com justificativa técnica e epidemiológica, não podendo jamais significar a não responsabilização do Estado, bem como, a mera substituição dos serviços públicos pela iniciativa privada". Oswaldo exemplifica: "Então, como é possível usar a iniciativa privada? Está faltando leitos de UTI, por exemplo, e o gestor não tem condições de criar esses leitos com urgência, existe uma grave crise epidemiológica, então, esses leitos podem ser alugados do setor privado eventualmente e circunstancialmente. Não se pode transferir para o setor privado a gestão e o planejamento desse serviço, ele é apenas alugado, é isso que a Constituição permite". Entre outros aspectos em defesa da saúde pública, os enunciados dizem ainda que é vedada a terceirização dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS) e Agentes de Combate às Endemias (ACS).
Para o sub-procurador os militantes e profissionais de saúde devem acionar o Ministério Público contra a privatização da saúde. "O Ministério Público está à disposição de vocês, são funcionários públicos muito bem pagos pelo dinheiro de vocês", reforça.
"O Brasil faz piada de sua constituição"
Também presente na mesa, o procurador do Ministério Público do Trabalho da Paraíba, Eduardo Varandas, reforça a ideia de que a Constituição de 1988 é clara no que se refere à saúde. Para ele, todos os processos de terceirização e quarteirização via OS e Oscips são demonstrações da "piada" que se faz no Brasil com o texto constitucional. "A Constituição nunca foi cumprida em sua plenitude. Os tribunais sonegam a efetividade das normas constitucionais e um dos maiores reféns dessa estrutura que é patrocinada também pelo poder judiciário é a saúde pública", diz. O procurador acrescenta que o texto constitucional aponta no artigo 196 que o estado deve ser o provedor da saúde pública para a população brasileira ao dizer que "a saúde é direito de todos e dever do estado".
Eduardo reforça que as terceirizações e quarteirizações da saúde pública via Os e Oscips têm se tornado "epidêmicas" em todo o país. "Para burlar uma regra tão básica e democrática que é a do concurso público, os estados contratam essas entidades terceirizadas, que na prática não têm nada de interesse público. São, na verdade, embustes de empresas onde já verificamos que há lavagem de dinheiro público, superfaturamento, burla da lei das licitações e contratos. Além disso, dentro da área de trabalho encontramos sonegação de FGTS, desvio de função, salário pago aquém do registrado na carteira do trabalho, inúmeras irregularidades", lista. O procurador exemplifica com a situação do Hospital de Traumas da Paraíba que está sendo gerenciado por uma OS e têm apresentado uma série de problemas no âmbito das obrigações trabalhistas e inclusive irregularidades encontradas pela vigilância sanitária. Ele conta que o MPT da Paraíba ingressou com uma ação civil pública pedindo a condenação do estado da Paraíba por danos à população pela privatização do hospital no valor de R$ 10 milhões. Segundo o procurador, o governo da Paraíba chegou a ser condenado, mas a decisão foi questionada e ainda corre na justiça.
De acordo com Eduardo, o setor de terceirizações é o que mais concentra no Brasil acidentes de trabalho, assim como a maior quantidade de reclamações por descumprimento da legislação trabalhista. "É um setor que nem na estrutura privada dá certo, a própria justiça do trabalho vê com ressalva as empresas privadas. E querem trazer para uma área da administração pública que é um direito personalíssimo e fundamental que é a saúde? Isso é um crime", pontua.
Eduardo situa a criação das OS e as Oscip no final da década de 90. "Quando estas leis foram criadas bastava uma simples leitura para entender que essas organizações jamais poderiam tomar o lugar do estado. Jamais poderiam terceirizar. No caso do Hospital de traumas da Paraíba, todo o hospital está terceirizado, a farmácia inteira está quarteirizada. Quando o estado se despe do papel de protagonista, e entrega a um terceiro, o terceiro não vai estar compromissado a fazer o papel de provedor da saúde pública. É óbvio que o sistema vai ser sucateado ainda mais. É óbvio que o compromisso com o interesse público se não é do estado de quem será?", questiona.
O procurador também convoca a população a estar vigilante. "Não existe Ministério Público sem o apoio do povo e não existe saúde pública e eficiente sem o protagonismo do povo. Não se pode ficar como telespectador vendo o estado brasileiro fazer da saúde pública uma mercancia de carne humana", afirma. "O problema antes de tudo no Brasil não é jurídico, a Constituição é clara, as pessoas é que tornam obtusas as suas letras", completa.
Por Katia Brandão Cavalcanti
MOVSUS – Movimento pela autonomia do SUS!