O Grito
por Ricardo Jones (in Homem de Vidro 2008)
Lá pelo terceiro ou quarto puxo, percebi que um belo exemplar feminino adentrava a sala e postava-se no canto da mesma. Era a "convidada de olhos verdes". Voltei-me para ela e disse um "boa noite" seco. Já havia sido comunicado pelo meu superior que ela queria assistir um parto, e que eu procurasse ser gentil com ela. Ok, pensei, "gentileza é comigo mesmo".Lá estava ela. Olhava para os demais presentes na sala com um misto de excitação e apreensão. Juntou as mãos ao peito, como que a rezar, e silenciosamente ficou a observar. Tinha o olhar fixo no períneo sangrante da paciente (sim,havia uma episiotomia aberta) e seus belos olhinhos verdes se comprimiram diante da visão do sangue escorrendo. Mas não disse nada, talvez porque tivesse sido avisada para não atrapalhar. Minha paciente continuava seus esforços para expulsar o bebê. Deitada com as pernas presas nas perneiras da mesa ginecológica sua dificuldade era redobrada, mas eu era ainda um pobre obstetra iniciante.
Tinha fé nos postulados que me guiavam; acreditava ser o parto um evento médico, controlado por especialistas, que dominavam a técnica de forma apurada, com o objetivo de salvar as mulheres de uma natureza cruel. "A natureza é uma má obstetra', já dizia um antigo adágio obstétrico, e assim eu fui doutrinado na escola médica. Por esta razão, minhas pacientes deveriam ficar na posição que mais me facilitava a intervenção, a manipulação e, em última análise, o auxílio que eu lhes poderia oferecer. "Mulheres parindo são como equilibristas em uma corda bamba no 40º. andar…e você é a rede", disse-me uma vez um professor de obstetrícia, incorporando nessa frase a violência do conceito de "inevitabilidade do desastre", tão admirada pelos estudantes de medicina. Essa era a base ideológica do ensino obstétrico: "Mulheres não são dignas de confiança". Santo Agostinho realmente deixou seguidores em todas as áreas da cultura.
Max olhava para meus partos iniciais com a delicadeza silenciosa dos sábios. Preferia não me aborrecer com algo que eu ainda era incapaz de compreender. Entretanto, seu silêncio me inquietava. Parecia querer dizer algo com sua mudez, e eu me irritava cada vez que ele via uma cena como esta e apenas sorria para mim. Levei muito tempo para entender o sentido de sua sutil ironia. Um, dois, três… estava quase nascendo. O cabelo negro do nenê contrastava com o rubro sangue que brotava do períneo de sua mãe. Ele parecia esforçar-se, mexendo sua cabecinha para frente.
– Agora, mãezinha … é sua chance. Ele vai nascer agora. Força,coragem!, gritei eu.
Mais uma força e …. pronto. Nasceu uma … menina! Antes que a paciente pudesse expressar uma palavra qualquer, de alegria ou alívio, escutei algo que por muitos anos ainda ecoa nos meus ouvidos. Um grito. Um grito lancinante. Um grito do fundo, das entranhas, dos porões dos nossos sentimentos. Um berro incontido, impulsivo. Um som profundo, do âmago, da escuridão das nossas emoções inconfessas. Olho para trás, entre assustado e iniciando a ficar contrariado.
Era a bela menina de olhos verdes. Trazia as mãos a segurar a cabeça, que pendia para frente. Seu corpo se curvava, e apoiava as nádegas na parede atrás. Os joelhos se dobraram. O gorro estava levemente deslocado, mostrando uma bela madeixa de cabelos dourados a lhe cair no rosto. As lindas esmeraldas que trazia nos olhos estavam umedecidas pelas lágrimas que escorriam pela face e molhavam a máscara cirúrgica. Já não chorava mais; soluçava. Uma enfermeira ajudou-lhe a se erguer, e abraçada a ela continuou a chorar, baixinho. No centro da sala, a mãe, alheia ao que estava acontecendo, já afagava seu filho nos braços. Gritava junto com seu bebê, dizendo "É uma menina, uma menina". Não havia pai naquele cenário. Certamente eu era o único homem a presenciar aquela cena. Chamei a auxiliar ao meu lado e lhe disse em voz baixa, mas com indisfarçável irritação: – Por que ainda não tiraram essa menina da sala? Não perceberam que ela não tem preparo emocional para participar de um parto?
A auxiliar então levou a menina, ainda chorosa, para fora da sala de parto. Apalpei o útero para sentir-lhe a firmeza depois da saída da placenta. Parecia firme o suficiente para promover a parada de sangue que brotava da ferida placentária. O bebê já estava no berçário, junto aos neonatologistas, e a mãe mantinha o olhar preso no teto, talvez imaginando como estaria seu filho e revivendo na memória os momentos que cercaram o evento que acabara de ocorrer. Resolvi trocar minhas luvas antes de iniciar a sutura da episiotomia. Ainda lembro a ritualística para isso, mas não tenho nenhuma saudade deste tempo de obscuridão na minha prática. A episiotomia era uma das rotinas irrefletidas, automáticas e sem embasamento que realizávamos cotidianamente, sem que tivéssemos uma discussão sequer sobre a racionalidade do seu uso. Minha conduta era realmente robótica, mas eu era um habitante da Matrix que sequer tinha noção das forças que controlavam minha atitude e minhas condutas. Antes de colocar o novo par de luvas esterilizadas, saí da sala para ver o que estava acontecendo com a garota. Ela já estava recomposta, mas ainda tinha seu rosto vermelho. O contraste do verde dos seus olhos com o vermelho do seu pranto fazia uma combinação de inesquecível beleza. Suspeito que muitas vezes fiz minha mulher chorar apenas para desfrutar deste deleite estético.
A bela Glamour Girl , entre soluços, disse:
– O brigado Dr. por me deixar participar do parto. Desculpe minha reação. Desculpe o meu grito e as minhas lágrimas. É que …. sabe .. é que …
– Pode falar … falei, lançando-lhe um sorriso de pseudo-benevolência.
– É que é tão lindo! Uma criança nasceu. É tão maravilhoso; tão fantástico. Um ser humano nasceu. Que coisa linda, linda! É incrível…Estava sorrindo. Um sorriso infantil. Seus olhinhos verdes brilharam, e pude ver a criança por trás da sensualidade de uma bela mulher.
– Ok, entendi, disse eu – fique calma. Não se preocupe, quase ninguém notou. Dei-lhe um abraço, e percebi que ela voltava a chorar.
"Amadores", pensei eu. Quando vêem isso, perdem a compostura. Gritam, se escabelam, choram … Entretanto, as lágrimas e o grito da bela menina haviam produzido uma modificação que eu ainda não havia avaliado por completo. Eu estava atordoado pela impressão sonora, mas muito mais pelo seu significado profundo. Queria saber porque alguém se deixava impressionar desta forma por um evento que para mim aparecia como banal e corriqueiro. O que havia de "especial" e "maravilhoso" que me escapara? O que havia escondido por trás do grito da Glamour Girl?
Voltei para a sala para terminar a minha cirurgia ainda sem entender as razões da minha inquietude. Ainda havia uma episiotomia a ser costurada. Despedi-me da bela loirinha de olhos verdes sem nunca ter podido ver seu rosto. Dirigi me para a sala de parto, sem imaginar que algo de muito grave estava acontecendo.
Quando novamente entrei na sala, para minha surpresa e atordoamento, havia uma outra mulher deitada sobre a maca. Não era a mesma que eu havia ajudado a dar à luz. Era outra; uma mulher diferente. Por alguma estranha razão eu olhava agora para uma outra pessoa. O grito da Glamour Girl ainda ecoava nos azulejos da sala, entrando nos meus ouvidos como uma sirene de alerta. Eu parecia ter acordado para algo através daquele som, e a transformação aparecia agora diante dos meus olhos. Eu havia visto um milagre, um assombro da existência humana, e só agora tinha me apercebido. Como por encanto pude enxergar o que a bela menina dos olhos de esmeralda havia me descrito. A paciente que eu havia atendido dera lugar ao que eu agora estava vendo: um prodígio da vida. Anos de dessensibilização não tinham conseguido apagar completamente a chama que existe em cada um de nós. Ainda restava algo para recuperar.
Ricardo Jones é obstetra muito respeitado no RS pela defesa do parto humanizado e domiciliar. Escreveu o livro "O Homem de Vidro" Porto Alegre Ed. Idéias a Granel, 2ª. Ed. 2008
Por Maria Luiza Carrilho Sardenberg
que nos traz a possibilidade de reabrir o entendimento dos inúmeros extratos que se sobrepõem, as terríveis codificações que alguns modos de olhar o mundo produzem em nós, roubando-nos as potências de vida.