Luta antimanicomial denuncia clínica em Cachoeiro
Acompanhando as repercursões da situação do manicômio Vera Cruz de Sorocaba, trazemos esta outra manifestação a favor da Luta Antimanicomial, divulgada no site da Assembéia Legislativa do Estado do Espírito Santo (https://www.al.es.gov.br/portal/frmShowContent.aspx?i=22412):
"Em comemoração ao Dia Mundial da Luta Antimanicomial, a Assembleia Legislativa recebeu, nesta terça-feira (10), cerca de 150 pessoas, entre profissionais, estudantes, pacientes e familiares para um ato público e palestra sobre a situação do atendimento dispensado às pessoas vítimas de algum tipo de doença mental.
Na palestra no Auditório I da Casa – aberta pelo deputado Claudio Vereza (PT), que ressaltou a disponibilidade do Legislativo para o movimento antimanicomial –, o destaque ficou por conta da situação em que se encontra a Clínica de Tratamento Psiquiátrico Santa Izabel, de Cachoeiro do Itapemirim, com mais de 400 internos, e que o movimento luta pela desativação.
Direitos humanos
O promotor de justiça Cleto Vinicius Pedrolo enfatizou que o Santa Izabel não tem nenhum planejamento de trabalho. “O Estado pode intervir ou exigir tratamento adequado, comunitário aos pacientes internados", disse, informando ainda que o diretor da clínica já responde criminalmente por algumas mortes que lá ocorreram.
O presidente do Conselho Estadual de Direitos Humanos, Gilmar Ferreira, denunciou que o Santa Izabel pratica “cinquenta anos de violação dos direitos humanos”. Segundo ele, as pessoas estão literalmente presas e que a situação dos internos faz parte da criminalização da pobreza, concluindo que “nossa consciência não pode permitir o silêncio dos muros da Clínica Santa Izabel”.
Participaram da palestra ainda o promotor de justiça dos Direitos das Pessoas com Deficiência de Viana, Marco Antonio Rocha Pereira, a secretária-executiva dos Direitos das Pessoas com Deficiência do Município de Vitória, Maria da Graça Loureiro da Silva e a psicóloga especialista em saúde do trabalhador, Emília Carreiro Ribeiro. A mesa foi coordenada pela psicóloga e militante do movimento antimanicomial no estado, Rafaela Gomes.
Cuidar sem excluir
Antes da palestra, das 13h30 às 15h30, o Núcleo Estadual da Luta Antimanicomial promoveu um alegre ato público nas escadarias da Assembleia, chamando a atenção para o Dia Mundial da Saúde Mental. Cerca de 200 pessoas, vindas de diferentes unidades de Centro de Atenção Psicossocial (Caps) participaram da manifestação, fazendo discursos relâmpagos ao microfone, dançando, cantando, carregando cartazes e faixas alusivas ao dia.
Segundo a secretária-executiva do Núcleo Estadual da Luta Antimanicomial, Niceia Malheiros Castelo Branco, o ato é para todos, para incluir as pessoas e chamar a atenção para a liberdade do direito de cuidar as pessoas que precisam de tratamento de sua saúde mental, “para mostrar a necessidade de o Estado ter políticas públicas para todos” e para o tratamento da saúde mental. De acordo com Niceia, não é preciso um lugar fechado para tratar do doente mental."
Data da Publicação: 11/10/2012
Aldo Aldesco/Web Ales
(Reprodução autorizada mediante citação da Web Ales)
Por Gildacia
Após uma década de reforma psiquiátrica ainda observamos tantos descasos, e desrespeito com o ser humano.
E na prática, como estão sendo cumpridos os objetivos propostos pela Reforma Psiquiátrica?
A lei tem ajudado de fato na redução do número de leitos psiquiátricos e de manicômios no país? Na opinião de Paulo Amarante, a Lei 10.216 promoveu menos mudanças do que preconizava o projeto de Paulo Delgado. “A nova legislação, que afinal substituiu o projeto, não fala em acabar com os manicômios: estabelece apenas que não se pode ter mais instituições com características asilares, e não define o que é um asilo”, lamenta. “Em meu entendimento, todo local que se baseia na exclusão tutelada é um asilo”.
Para o professor, o fato de o projeto ter ficado 12 anos em tramitação — de 1989 (quando proposto) a 2001 (quando substituído pela Lei 10.216) — deve-se à resistência dos donos dos hospitais psiquiátricos, de algumas associações de familiares de pacientes (Radis nº 18), vinculadas a esses hospitais e por eles influenciadas, e pelo setor da psiquiatria tradicional e conservadora que acha que doença mental é perigosa, incapacitante e sem cura.
Outra crítica marcante, para ele, diz respeito à regulamentação da internação psiquiátrica que, segundo a lei, está dividida em três tipos: a voluntária, quando o paciente assina um documento e aceita a internação; a involuntária, quando julgada necessária pelo médico; e a compulsória, decidida pela Justiça quando a pessoa comete algum delito justificado por um transtorno mental severo. Em sua opinião, há uma contradição nessa classificação. “Se a pessoa está em crise e aceita ser internada é porque ela tem lucidez e capacidade para entender que está doente”, questiona. “Mas, se ela não aceitar, é internada involuntariamente”. Ou seja, de qualquer forma há a internação. A diferença é que, quando involuntária, o médico precisa avisar ao Ministério Público em 72 horas, conforme determina o parágrafo 7º da lei. Isso acaba gerando transtornos para o próprio MP que, segundo o professor, “não sabe o que fazer com essa notificação, e alega que não lhe cabe questionar a autoridade médica”, diz Amarante.
Da mesma opinião, o enfermeiro Jeferson Rodrigues, especialista em Atenção Psicossocial pela Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), acredita que a lei deixou de lado duas das principais lutas do Movimento Antimanicomial, a da extinção dos hospícios e a da inclusão dos “loucos” na sociedade. “Tudo devido à ação corporativa de algumas categorias profissionais e aos interesses das indústrias farmacêuticas, que conseguiram alterar o artigo 1º, que proibia, em todo o território nacional, a construção de novos hospitais psiquiátricos e de novos leitos nos já existentes”, acusa. Mestrando do Curso de PósGraduação em Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Jeferson afirma que a nova legislação “esqueceu” de romper com o modelo manicomial.
Pedro Gabriel, no entanto, acredita que o texto final da lei, embora atenuado em vários pontos, serve como matriz normativa “muito eficaz” para a mudança do modelo assistencial. “Nenhum novo hospital psiquiátrico foi construído desde então, e a redução dos leitos convencionais é regular e sistemática: só no atual governo, de 2003 até agora, foram reduzidos 6.425 leitos, mais de 2 mil ao ano”.
As críticas, porém, alcançam a Portaria 336, de 19 de fevereiro de 2002, que define as diretrizes para o funcionamento dos CAPs, categorizandos por porte e clientela, com as denominações CAPs 1, serviço de atenção psicossocial com capacidade operacional para atendimento em municípios com população entre 20 mil e 70 mil habitantes; CAPs 2, em municípios entre 70 mil e 200 mil habitantes; CAPs 3, com mais de 200 mil habitantes; CAPsI, destinados ao atendimento de crianças e adolescentes; e CAPsAd, para pacientes com transtornos decorrentes do uso e da dependência de substâncias psicoativas. Tais modalidades diferem também por horário de atendimento, número de pacientes atendidos por dia e de profissionais disponíveis.
Para Amarante, o problema dessa portaria é que ela retirou do texto a expressão NAPs — de Núcleo de Atenção Psicossocial —, uma proposta associada aos CAPs. Embora criados com a mesma função, a de substituir o modelo de internações psiquiátricas e manicômios, cuidando na família e na sociedade de pessoas que sofrem de transtornos mentais, os dois tipos guardam pequena e importante diferença. “Os NAPs podem ser considerados um serviço de maior abrangência, incluem não apenas o paciente, como a família e a sociedade, enquanto o CAPs cuida basicamente da assistência ao paciente”, critica o professor da Ensp.
Para Pedro Gabriel, é incorreto afirmar que a portaria excluiu os NAPs. Ela apenas tornou homogênea a nomenclatura para fins de cadastro no SUS, e estabeleceu as exigências mínimas (recursos humanos, área física e capacidade de atendimento) que cada serviço deve ter. “Os NAPs de Santos continuaram se chamando NAPs e funcionando como tal, mas são cadastrados como CAPs 3”, diz. Segundo o coordenador, a norma anterior (Portaria 224, de 1992) mencionava indiferentemente CAPs/NAPs, e havia uma interpretação “meio livre” de que os NAPs funcionavam 24 horas. “Portanto, não houve esta mudança na concepção original”, afirma Pedro Gabriel. “Ao contrário, houve um reforço e uma fixação do papel territorial dos serviços”.
Mas Amarante insiste na crítica: ao categorizar os tipos de CAPs, a portaria acabou impondo a necessidade de um diagnóstico preciso do paciente. E, para ele, diagnosticar é muito complicado quando se fala de transtorno mental, pois “louco” é uma categoria social. “Sou louco por amor, louco pela vida, é um conceito geral, não diz respeito apenas à doença”, pondera. “A psiquiatria é que diz que toda loucura é doença”. Em sua opinião, receber um diagnóstico psiquiátrico é muito perigoso, pois junto dele está o preconceito e a discriminação. “Quantos já passaram pela experiência de receber um diagnóstico de loucura e não conseguir mais um emprego sequer?”, pergunta. Amarante defende que não existe doença, mas uma experiência subjetiva que pode ser chamada de “natureza esquizofrênica”.
Nesse sentido, afirma, “a portaria deveria ter a função apenas de organizar os serviços de maneira geral”. Ou seja, dar o conceito do que é CAPs e seus objetivos. “Posso dizer que um CAPs não deve estar num hospital, tem que ser na cidade, deve ter relações com a sociedade, trabalhar com a família e atender qualquer pessoa, por exemplo um pai que procura atendimento porque seu filho usa drogas”. No entanto, se não existe a doença, de acordo com a norma legal, o SUS não pode pagar pelo serviço.
Mas, rebate Pedro Gabriel, não foi a Portaria 336 que inventou isso. “Há grupos de trabalho desenhando uma proposta mais ágil, eficiente e racional de remuneração do atendimento dos CAPs”, adianta. “Atribuir esta velhíssima distorção oriunda do velho Inamps aos CAPs é historicamente incorreto”. Em sua argumentação, Pedro lembra até do médico Carlos Gentile de Mello (19201982), um ácido crítico do antigo sistema médicoassistencial brasileiro, que já condenava essa distorção. Segundo o coordenador, nenhum município queria fazer CAPs até que a Portaria 336 passou a assegurar o financiamento extrateto dos serviços. “Então, é justamente o contrário do argumento apresentado, foi esta medida que deu sustentabilidade financeira à expansão dos serviços substitutivos”, contrapõe. “Perguntem a qualquer secretário municipal de Saúde”.
Para Jeferson, entretanto, o que temos hoje em termos de legislação não é suficiente para que a Reforma Psiquiátrica saia do campo da teoria para a prática. “Muitas pessoas ainda confundem a Reforma Psiquiátrica com uma mera reorganização de serviços, ou com a modernização da instituição psiquiatria”, reflete. Como Amarante, Jeferson acredita que essa reforma é “um processo social complexo que envolve movimentos, atores, conflitos e uma tal transcendência do objeto de conhecimento que nenhum método cognitivo ou teoria pode captar e compreender sua totalidade”.
Embora acredite na eficácia da legislação vigente, Pedro Gabriel compreende as críticas e as considera relevantes. Destaca no entanto a importância dos CAPs, uma espécie de “lugar geométrico de todas as influências”.
“O CAPs é sensacional nesse aspecto, e é uma real novidade tecnológica”, elogia. Pedro conta que em setembro participou de longa reunião num CAPs de Natal que comemorava 10 anos de funcionamento, com mais de 30 usuários, todos expacientes graves e sofrida história manicomial. “Nenhum deles tinha precisado internarse no último ano, mas falavam disso como um duro trabalho cotidiano — o trabalho da cura. Onde estariam eles se não fosse o CAPs?”.
Para o especialista, o modelo proposto de substituição dos manicômios está centrado no paciente, em sua inclusão ativa na vida cotidiana. E o CAPs ajuda na articulação da rede de saúde mental em determinado território, aproximando a rede básica, os ambulatórios, as residências terapêuticas, os leitos de saúde mental em hospital geral, os programas de geração de renda e trabalho.
Segundo dados da Coordenação de Saúde Mental do Ministério da Saúde, existem hoje 660 CAPs (235 do tipo 1, 246 do tipo 2, 29 do tipo 3, 51 CAPs infantis e 89 CAPsAd), 320 módulos de residências terapêuticas, 1.970 leitos em hospital geral, centenas de equipes do Programa de Saúde da Família treinadas para atendimento em saúde mental, com apoio de cerca de 300 programas de geração de renda e inclusão pelo trabalho.
Mais do que a portaria ou a lei, um importante impasse para o avanço da reforma, segundo o próprio Pedro Gabriel, é ainda a pouca agilidade e o pouco esforço de alguns estados e municípios em proporcionar mudanças. “A resolutividade da atenção básica para os problemas de saúde mental é ainda baixa em muitos locais do país”, diz. “Precisamos também melhorar a efetividade do atendimento a usuários de álcool e outras drogas”.