O Lixo Não Fala
O velho adágio nos diz que "uma imagem vale mais do que mil palavras". Eu diria que, dependendo da imagem, ela vale por toda uma época. Assim parece ser com os quadros de Leonardo da Vinci na Renascença ou então com as telas de Delacroix na ascensão burguesa. Muitas imagens parecem sintetizar todo sentido de seu tempo.
Quero falar de uma imagem vista recentemente num daqueles noticiários de TV no horário de almoço. Uma mulher negra moradora num viaduto, chorando desesperada porque sua cadeira velha junto com seu sofá carcomido foram lançados no caminhão de lixo e devidamente triturados por zelosos fiscais da prefeitura. Ela, que quase nada possuía, transformara-se agora em dona apenas dos trapos que vestia e dos filhos pequenos com aquele ar distante que só a fome sabe produzir.
O lixo parece seguir a sina do poema "Morte Absoluta" de Manoel Bandeira. Na verdade morremos lentamente desde o dia em que nascemos até que um dia, depois da morte efetiva do corpo, vem também a morte progressiva da memória. O que antes foi um objeto de amor ou de precioso uso para alguém, lentamente perde seu valor, simbólico e econômico. O destino do disco ganho pela antiga namorada, o caminho da velha aparelhagem de som, a sina do estofado esfarrapado, é tudo, com a lentidão de quem marcha para o cadafalso, seguir em direção ao lixo.
Todas as civilizações sempre tiveram problemas sanitários. Nunca encontrou-se uma solução ideal para o que fazer com o lixo. Hoje temos milhares de aterros contaminando os lençóis freáticos, poluindo o ar, disseminando doenças. Apesar de tudo, descobriu-se a genial utilidade dos processos de reciclagem. Lixo pode virar adubo, lixo pode virar energia, lixo pode retornar para nossas mesas e ser novamente uma latinha de cerveja ou um potinho de margarina. Somos seres autofágicos de lixo. Existe no entanto outra utilidade do lixo que poucos apregoam. O lixo readquire valor, econômico e simbólico, para aqueles que não possuem nada e acham que podem possuir o lixo, afinal, o lixo não é o rejeito de todos? Que mal há em se ter aquilo que ninguém mais quer?
Assim, aqueles que não tem casa dispõem móveis na imaginária sala de estar embaixo do viaduto. Vão dormir em camas com estrados quebrados e colchões roídos por traças e percevejos, embebidos em restos de secreções "milenares". Sonham com um teto sem a frieza do concreto e o medo do relento. Isso já é uma sólida evidência de que aqueles que vivem em meio ao lixo e ao desabrigo ainda são seres humanos. Eles recriam a caricatura das casas que um dia tiveram ou que ainda sonham ter. Mas, que tragédia! O lixo humano e o lixo das cidades, em convivência "harmoniosa" a sombra dos viadutos, possuem o péssimo hábito do incêndio, não o incêndio político que por certo incomodaria mais as elites, mas o incêndio de fato, que queima o lixo, os seres humanos que vivem no lixo e destrói o patrimônio público ameaçando o viaduto, tesouro da classe média, de terrível desabamento.
A conclusão sempre óbvia mas só agora constatada é que seres humanos não podem viver embaixo de viadutos. Não que isso necessariamente fira a dignidade de quem estava la embaixo ou de quem os via de cima. É que só agora descobriu-se que o lixo é inflamável. Temos portanto de retirar todo o lixo, inclusa as pessoas transformadas em lixo, para que o perigo seja eliminado. Se o lixo é lixo, pelo menos o lixo de matéria inorgânica deve ser destruído, afinal, o lixo orgânico já foi consumido e o lixo humano ainda está vivo.
Mas aí temos um problema. O seres humanos que se transformaram em lixo são humanos e, portanto, são capazes de sentir, são capazes de significar a realidade, amam e odeiam como nós, seres humanos que ainda não nos transformamos em lixo. O resultado é que o lixo sendo triturado em caminhões de lixo, de fato, não é lixo para quem estava embaixo do viaduto.
Tragicamente, o que era visto como lixo por quem passava sobre o viaduto não é lixo para quem morava embaixo dele. Era a única propriedade privada que o sistema social em que vivemos, que "garante" a propriedade privada para todos os cidadãos, permitiu àqueles que estavam embaixo do viaduto.
Inegável que viaduto não pode ser casa. Inegável que as pessoas não podem conviver com o lixo. Mas, deveria também ser inegável a máxima que diz que todos os seres humanos devam ser tratados de maneira humana e que o sofrimento não pode ser apenas contemplado mas também atuado, para minora-lo ou extirpa-lo. Se o lixo não é lixo para quem vive no lixo. se a cadeira ainda pode ser usada e o sofá carcomido pode ser uma cama para quem foge da dureza do chão, então mandaria o bom senso que o lixo fosse visto pela ótica de seu dono, como um valor, mesmo que depois fosse jogado no lixo que deveria ser o seu lugar, porque o seu dono assim fez e agora pode compartilhar de um mundo com mais conforto e felicidade fora do teto do viaduto.
A questão fundamental é que o homem, em qualquer condição, mesmo que vivendo no lixo, NÃO É LIXO…É HOMEM! Quando se perde essa dimensão das pessoas que queremos ajudar ou nos atrevemos a ser um instrumento, quando pensamos em ser voz daqueles que não tem voz e não ouvimos suas vozes de desespero, quando assumimos uma postura paternalista de achar que estamos fazendo o melhor pelas pessoas sem esclarecer a elas primeiro o que é esse "melhor" e pouco ouvir delas o que querem com a própria vida, bem, estamos então caminhando em direção dos braços daqueles que sempre criticamos. Corre-se o sério risco de no futuro também olharmos para baixo do viaduto e não mais destinguirmos as pessoas do lixo porque, no fundo, tudo será igual mesmo. O LIXO NÃO FALA, mesmo quando grita de desespero!
ERASMO RUIZ
Por jacqueline abrantes gadelha
ERASMO,
Suas palavras são intensas e nos induzem a questionar os nossos próprios valores. Esse exercício é imprescindível para nos tornarmos melhores.
Um abraço
Jacqueline