SU(S)BIMARINO?
SUSBIMARINO ?
Na criação do SUS houve muitas vitórias e muitas derrotas. Experimentando as vitorias descobrimos a insuficIência das Políticas e dos marcos "burocrático-legais" para implementar o SUS. Na "Reforma da Reforma" CAMPOS chamou a atenção para a gestão, para o modelo de atenção, a clínica… A lei não bastava. E aprendemos muito desde então. A criação do PSF provou a necessidade de pensar formas de organizar, de definir responsabilidade… sabemos, hoje, o quanto "os modelos de atenção", os "modelos de gestão", a micropolítica, a subjetividade produzida nas relaçoes individuais e institucionais são importantes para definir os resultados concretos. No entanto, as derrotas e insuficências da criação do SUS também se avolumam. E, apesar de todos os avanços, alguns limites parecem se cronificar. Hoje há sinais fortes de problemas estruturais que convidam a uma reflexão. Percebe-se os limites da descentralização e da municipalização. Como fazer um sistema e não uma miríade de sistemas desconexos, e pior, muitas vezes competindo entre si? A proposta da regionalização chega lentamente, e ainda não resolve o problema da responsabilidade sanitária dos municípios. Ainda é possível não implantar o SUS, não fazer atencão básica, a cada eleição desfaz-se o que começava… Assim tem acontecido…sem muitas consequencias para os gestores. Mas este não é o problema mais grave. Ligia Bahia[1] tem apontado o espantoso crescimento do setor suplementar desde a criação do SUS e o escoamento de recursos públicos para o setor suplementar. Na prática o Estado brasileiro financia pesadamente o setor privado[2] em descontos do Imposto de Renda na compra de convênios privados, na compra de serviços privados de saúde por estatais e governos (federal, estaduais e municipais) , com o "atendimento" pelo SUS dos pacientes não lucrativos do setor privado e com os gastos com Agencia Nacional de Saúde (ANS). Em geral o sistema privado quer atender os saudáveis e excluir os doentes, principalmente crônicos e dispendiosos. O SUS faz esta "parceria" que, além do impacto econômico, tem um impacto político: dá legitimidade à tirania da saúde como mercadoria. No filme de M. Moore sobre o sistema de saúde norte americano (SICKO) aparece um senhor que leva dedos amputados em um hospital de emergência e recebe, antes de qualquer procedimento, a informação de que o implante de cada dedo custariam 12 000 e 60 000 dólares. Ele deveria decidir ou escolher… No Brasil o setor suplementar está confortavelmente protegido deste desgaste. Quando aparecem as letras miúdas dos contratos é o SUS que tem que resolver. E o setor privado pode contar com a ANS que, como todas as agências reguladoras criadas no auge da onda neoliberal, se constituiu em um descarado dispêndio de dinheiro público para sustentar profissionais cuja a finalidade inequívoca é inventar formas de tornar viável o sistema suplementar. Nada de colocar limites na aquisição de equipamentos, nada de politizar os recordes de queixas contra os serviços privados, nada de explicitar os limites e consequencias da existência de uma lógica de mercado lidando com a saúde das pessoas.
Talvez seja pertinente olhar para a tradição brasileira de "casa grande e senzala" onde cabem curiosas relações entre público e privado, e nos perguntar: até que ponto o SUS não está sob o risco de se tornar um arranjo público para servir o "privado" ? Alguns outros fatos alimentam esta preocupação: nos países que têm sistema público universal bem constituído a implantação do sistema não se deu sem enfrentamentos claros com atores muito conhecidos: o complexo médico-industrial e a corporação médica. É amplamente conhecido o movimento migratório de médicos britânicos e canadenses nos momentos de instituição do sistema público de saúde nestes países… Justamente porque a base destes sistemas é a atenção básica (ou primária, como é chamada na Literatura internacional). Os países que tem sistema público controlam a formação de recursos humanos, principalmente médicos, com políticas de Estado tão claras e firmes quanto conflituosas. Quem faz medicina na Inglaterra ou Canadá sabe de antemão que a chance de ser "especialista" é bem menor do que a de ser generalista: as vagas para residência são controladas rigorosamente. Pelo menos metade de todas as vagas é de profissionais para a Atenção Básica. Este é um enfrentamento político que o SUS não fez e não parece disposto a fazer. E este tema não está nem na agenda. O SUS disputa profissionais na regra de mercado e os especialistas crescem na medida da necessidade do complexo médico industrial. Nesse contexto talvez não seja casual a inexistência de uma carreira SUS. Cabem aos municípios disputar profissionais rarefeitos para a atenção básica !!! Com escassez de médicos podemos nos perguntar o que temos chamado de Atenção Básica? Talvez por adaptação desvalorizamos a adscrição de clientela. Ora com uma proporção inadequada equipe/população, ora com a presença de serviços ainda chamados de atenção básica que sequer fazem adscrição. Atenção básica nos países com sistema universal de saúde implica em pelo menos um médico e um enfermeiro para cerca de 2000 pessoas (com variações, mas nunca tanto quanto no Brasil). Esta equipe tem por atribuição fazer coordenação de casos no sistema (ou seja, dar a última palavra juntamente com o paciente frente a decisões terapêuticas de especialistas), além de filtrar o acesso a especialistas. Para isto é necessário conhecimento técnico, poder político / social e tempo/vínculo com os usuários. No Brasil, o discurso sanitário, talvez porque ampliou-se o numero de profissionais nas equipes, desvaloriza a diminuição da proporção equipe/população. Esquece-se que a memória e o tempo do médico e do enfermeiro não se expandem com o acréscimo de outros profissionais. Um certo discurso (surreal neste contexto) contra o trabalho médico centrado na atençào básica, converteu-se em mantra revolucionário. É como se não tendo feito e não fazendo um enfrentamento político real da questão médica, prefira-se lutar com fantasmas. Aguarda-se o nascimento redentor de uma classe médica que vai ignorar as pressões de mercado, vai se "desmedicalizar" (ampliando a clínica mesmo pressionada por grande demanda) e vai abraçar o SUS como quem abraça uma missão religiosa… Haja fé… Até porque não é nem o que se pede dos outros profissionais que estão de fato na atenção básica, para os quais o SUS tem competitividade salarial no mercado. Tudo isto se mistura com a herança dos Postos de Saúde Programáticos e acaba compondo uma atenção básica com missão pouco clara, que ora ainda pensa que o seu núcelo de trabalho deve excluir a doença, a morte e a atenção individual e ora (depois do acolhimento) pensa que é um Pronto Atendimento. Para piorar ainda herdamos arremedos do autoriário socialismo real que nos faz enfiar goela abaixo da população, a impossibilidade de escoher a sua equipe… Sem falar do conceito habitacional de família que utilizamos como se fosse "natural e óbvio", obrigando as pessoas que moram juntas a se vincularem à mesma equipe. Neste contexto tem sido comum que os profissionais repitam pelo Brasil afora o jargão autoritário: "a população não entende o SUS. Precisamos conscientizar a população". Eu também não entendo o SUS. Mas, salvo engano, sem tempo para a atenção individual , sem coordenação de casos no sistema e, consequentemente, sem uma adscrição com proporção razoável equipe/clientela para efetivamente facilitar o vínculo… estaremos longe da atenção básica tal como ela demonstra eficácia e legitimidade em outros países (STARFIELD 2000). O centro de controle de doenças (CDC) norte americano logra alguma eficácia preventiva, e também não incomoda o setor privado. Os postos de saúde sem médicos ou com equipes sobrecarregadas, fazendo escolhas de "sofia" entre o "ruim e o pior" também não incomodam o setor suplementar. Ao contrário, torna-os piores. O delírio capitalista que associa "saúde" ao consumo de tecnologias duras e especialistas, agradece a ausência deste debate na sociedade. Agradece que o SUS não diga à sociedade que os especialistas (com seus check up’s e sempre novos exames) FAZEM MAL À SAÜDE. Nos EUA a medicina especilializada já é a terceira causa de morte na população (STARFIELD 2000b). Não se trata aqui de propor que se desvalorize o que se conseguiu e o que se consegue. Mas talvez fosse preciso dizer à sociedade que muito do que se faz na atenção básica, não é o recomendável, nem é inevitável que seja tal como está. Talvez esta seja uma péssima consequencia da municipalização da saúde: os municípios mesmo quando não tem condições sequer de colocar um médico em um PSF, não podem eleitoralmente dizer à população que o que sobra não é atenção básica (o que não significa dizer que não tenha algum impacto, mas não é atenção básica). Da mesma forma, sistematicamente os gestores preferem sobrecarregar uma equipe, para fingir que prestam uma atenção adequada a um número desmedido de pessoas, do que assumir que só é possível atender dignamente uma parte menor da população. Mesmo que fosse o caso de admitir uma situação de "guerra", seria pelo menos necessário dizer que se trata disto, de uma excessão momentânea, ou pelo menos estratégica, e não naturalizar o desastre.
Alías este silêncio sistemático do SUS em relação aos danos intrísecos das ações de saúde o coloca, talvez, alimentando um outro elemento da lógica de consumo na saúde: a ciência médica como substituta da religião numa relação de produção de afetos passivos de medo / esperança, infatilizando e medicalizando a vida. O SUS também tem disputado sem muita crítica, o lugar de porta voz e executor acrítico da "ciência", contribundo com a lucrativa infantilização esperançosa da população… Acaba aceitando a redução de todas as questões de saúde a polaridades binárias tipo bem contra o mal. O bem sempre tem uma bugiganga para vender, um comportamento "arriscado" para proibir e uma esperança de descobrir algo que (agora sim) vai acabar para sempre com a morte e sofrimento. Mais um heroísmo para coleção do SUS…Compreender, analisar, construir narrativas sobre os problemas, compartilhar decisões e escolhas coletivas… ou pelo menos compartilhar as dúvidas e os conflitos de interesse do mundo acadêmico, nem pensar.
Enfim, inventamos muitos dispositivos até hoje como clínica ampliada, acolhimento, co-gestão, ambiência, processo de trabalho etc… e tem sido bem enriquecedor aprender com eles. No entanto, também é preciso admitir que eles podem servir ( e de fato frequentemente servem ) para alimentar a engrenagem perversa em que o SUS pode estar se transformando. Apesar de tudo que ele tem de bom. Então…como lidar com o micro, rediscutindo o macro.. ou como diz o greenpeace…agindo localmente, mas pensando globalmente? como disparar um processo de debate político para mudanças nas regras do jogo?
[1] A unificação do sistema público e a expansão do segmento suplementar: as contradições entre o SUS universal e as transferências de recursos públicos para os planos e seguros privados de saúde BAHIA, L.
"
Para o ano de 2005 esses gastos (considerando os de estatais selecionadas) somam pelo menos cerca de 7,5 bilhões assim distribuídos: 1) 979.111,62 milhões para o financiamento de planos de saúde de servidores federais; 2) estimativa de gastos com internações identificadas de clientes de planos de saúde aproximadamente 1 bilhão; 3) gastos tributários de pessoas físicas 1.943.016,78 bilhão e gastos tributários de pessoas jurídicas 725.171,08 milhões; 4) 2.726.000 bilhões para o financiamento dos planos de trabalhadores de 8 empresas estatais selecionadas (entre as quais a Petrobrás, o Banco do Brasil e a Caixa Econômica)[2]"
Por Ricardo Teixeira
Que síntese fantástica, Gustavo!
Você resume, de modo brilhante, alguns dos principais impasses e contradições pelos quais passa a etapa atual de construção do SUS.
Identifico 4 blocos de conteúdo fundamentais em seu texto:
1) O enorme crescimento do setor privado às custas do escoamento de recursos públicos.
Você lista pelo menos quatro mecanismos pelo qual o Estado brasileiro tem financiado pesadamente o setor privado:
Além de evidenciar como este estado de coisas vem protegendo economicamente o setor privado, sua análise ainda tem o requinte de demonstrar como o SUS acaba protegendo-o politicamente do desgaste, com o genial exemplo do filme Sicko do Michael Moore.
Você termina este primeiro bloco nos deixando uma pergunta politicamente fundamental: até que ponto o SUS não se arrisca, desse modo, a ser um arranjo público a serviço de interesses privados?
2) A inevitabilidade do enfrentamento do complexo médico-industrial e da corporação médica para superarmos obstáculos radicais para a implantação de um sistema baseado na Atenção Básica.
Você não diz explicitamente, mas fica claro em seu texto que as políticas de indução de redirecionamentos na formação (principalmente médica) – como o PRÓ-SAÚDE – têm sido claramente insuficientes.
Quanto tempo ainda temos para esperar resultados dessas estratégias, antes que o projeto de um sistema AB-centrado possa se considerar naufragado?
É preciso dizer com todas as letras, como você diz: a lógica da formação continua francamente seguindo as necessidades do complexo médico-industrial e não do SUS que necessitamos construir!
Não tenho dúvidas de que esse é um enfrentamento político que não podemos mais adiar!
3) A desfiguração da Atenção Básica diante deste cenário.
(Esse é um pedaço de seu texto que gostaria de questionar em alguns pontos – por exemplo, não vejo contradição entre as indiscutíveis insuficiências de recursos médicos qualificados para a AB, que você tão bem aponta, e o questionamento de uma AB médico-centrada -, mas deixemos isso para um outro momento, para não tirar o foco do que você traz de essencial no contexto da sua presente análise!)
Esse é outro bloco de análise brilhante e que você arremata colocando o dedo na ferida dos gestores que, perseguindo resultados meramente "numéricos", vão naturalizando o desastre…
Quanto ao toque de visão espinosana a respeito dos estragos afetivos de um certo modo de "produzir saúde" que escraviza e infantiliza, nem vou comentar. Nessa parte, o "cabloco" arriou de novo e adorou tudo que você disse! Senti-me inteiramente contemplado…
4) O dilema que essa conjuntura traz para nós que temos apostado nos dispositivos-chave da PNH (clínica ampliada, acolhimento, co-gestão, ambiência, processo de trabalho etc.).
Com esse encerramento, seu texto me fez lembrar do questionamento feito por militantes do MST do Pontal de Paranapanema, em diálogo com algumas companheiras consultoras da PNH aqui no estado de São Paulo: não estaríamos a dar uma "face humana" ao capitalismo?
Lendo seu texto, eles poderiam, agora, se perguntar: não estaríamos a dar uma "face humana" à engrenagem perversa em que o SUS pode estar se transformando?
É claro que este questionamento, assim posto, é tão pertinente, quanto simplista. Não podemos encerrar a discussão por aí, mas é um bom mote para que ela avance em novos patamares…
Pessoalmente, penso que esse questionamento, mais que tudo, reforça a idéia de que a potência maior destes dispositivos não deve ser a de trazerem soluções tópicas para encobrir problemas tão graves, mas é mesmo o de pôr em análise os modos de produção de saúde que ainda prevalecem no SUS.
Enfim, seu texto, definitivamente, é uma preciosa cartografia de alguns de nossos mais cruciais dilemas atuais, aguçando nossa mira nos combates por um SUS que se afirme como autêntica política pública.
Valeu, companheiro!