Machado de Assis e Humanização

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Machado de Assis é uma fonte inesgotável. Muito já foi escrito sobre seu refinamento, sarcasmo…enfim, Machado permite inúmeras leituras, como tudo que é belo e complexo. Tantas teses já foram escritas para sabermos se Capitu traiu ou não Bentinho; psicanalistas invocaram Freud para analisar as teias e tramas de "Esau e Jaco". Mas o mais importante é o prazer de ler e mergulhar nas tramas. Percebe-se que grande parte dos dramas e medos não se perderam pelas ruas do Rio de Janeiro da época do Império e da proclamção da república. Estão presentes no apartamento ao lado ou mesmo em nossa sala.

 

Ora, se todo mundo pode falar do seu Machado, atrevidamente gostaria de ressaltar o meu com o viciado olhar de um consultor da Política Nacional de Humanização. Peço licença para evocar um Machado menos conhecido: o poeta! Tudo bem que literariamente pode não ser o "melhor" Machado de Assis, um pouco distante da argúcia do cronista ou da dramaticidade introspectiva do romancista. Pouco importa! Sua originalidade e beleza também pode ser percebida entre rimas e belas metáforas.

 

Quero destacar um poema chamado "A Mosca Azul". Não o colocarei por completo aqui pois é extenso e para le-lo temos que ter a companhia de um bom dicionário. Mas sintetizarei a estória. O poema começa retratando o vôo e a beleza de uma mosca azul entre as flores com os prismas de luz em suas asas, comparadas por Machado a beleza de uma pedra preciosa. Claro, o olhar do homem se encanta com tanta beleza, quer entende-la, explica-la. Mas a própria mosca já possui a resposta:

 

"Então ela, voando e revoando, disse:
— "Eu sou a vida, eu sou a flor
Das graças, o padrão da eterna meninice,
E mais a glória, e mais o amor".
"

 

E lá fica o homem mudo a contemplar imaginando mil coisas que a mosca poderia ser e expressar, Mas ele não estava contente. Tinha que a todo custo entender o que era a mosca. Seu primeiro passo é conte-la, dommina-la:

 

"Então ele, estendendo a mão calosa e tosca.
Afeita a só carpintejar,
Com um gesto pegou na fulgurante mosca,
Curioso de a examinar.

Quis vê-la, quis saber a causa do mistério.
E, fechando-a na mão, sorriu
De contente, ao pensar que ali tinha um império,
E para casa se partiu.
"

 

Mas como entender a mosca em sua complexidade? Como saber do real sentido de sua beleza? Como transcender a ilusão das metáforas? A resposta para estas perguntas a ciência já havia consagrado. Para entender a complexa unidade das coisas, temos que fraciona-las, recorta-las, disseca-las:

 

"Dissecou-a, a tal ponto, e com tal arte, que ela,
Rota, baça, nojenta, vil
Sucumbiu; e com isto esvaiu-se-lhe aquela
Visão fantástica e sutil.
"

 

A mosca morta e dividida em pedaços não podia mais expressar sua beleza. Tornara-se irredutível à estratégia de conhecimento engendrada pelo homem. Perdera completamente a beleza das suas metáforas pois só estimulava a criatividade do homem ao apresentar-se inteira! O choque é tamanho, a dor da perda é tal que a sina do observador transforma-se em drama:

 

"Dizem que ensandeceu e que não sabe como
Perdeu a sua mosca azul.
"

 

O recado parece claro. A perda de unidade do belo expressaria o seu contrário. tentar conhecer as coisas dessa maneira deixa o vazio do desconhecimento e, o pior de tudo, a perda da beleza e da potencialidade criativa.

 

Mas afinal, o que a Mosca Azul tem haver com a PNH? Andando por todos os lados percebo o encantamento da maioria dos trabalhadores do SUS quando são apresentados à Política. O deslumbramento é estético, não só pela beleza das palavras mas pela percepção criadora que elas evocam. E quando os dispositivos vão ganhando vida concreta, a partir das ações das pessoas, tem-se aquele gosto maravilhoso que a metáfora abandonou a cartilha e ganhou o espaço do dia a dia. Tudo bem que as cores podem ser menos intensas ou que o sol seja menos brilhante. O importante é que a arte se faz vida e é essa nova vida, a musa que inspira novas artes.

 

Mas aí aparecem muitos problemas. Nós estamos acostumados a ver as coisas como o homem que quer dissecar a mosca. Quando os consultores chegam muitas vezes acabam sendo pressionados a realizarem "mágicas", a oferecerem soluções prontas, a abrirem suas "caixas de ferramentas" e retirarem os "dispositivos" como se eles acabassem reduzidos à instrumentos de trabalho. Como implantar o "Acolhimento com Classificação de Risco" sem implementar a discussão do acolhimento como um princípio do fazer saúde? Da mesma forma, o ACCR não pode estar desarticulado da implementação de novas práticas de gestão que estimulem a participação dos trabalhadores. Mas os poderes precisam ser relativizados, e os usuários, como ficam nessa história toda? Como introjetar a idéia de "Clínica Ampliada"? E a ambiência? Ela pode simplesmente sair dos desenhos de bem intencionados arquitetos sem que as pessoas participem ativamente na tomada de decisão sobre os espaços que queiram viver e trabalhar? E podemos promover saúde e novas lógicas de gestão se a nossa saúde está comprometida pela forma como se configuram nossos processos de trabalho? E a configuração desses processos, mediados pelas relações de poder, não interferem diretamente em como o ACCR acaba sendo efetivado?

Como se pode perceber, queremos a unidade da mosca azul! Não importa se num primeiro momento só possamos perceber a beleza das asas ou contemplar os prismas do sol ou da lua. Ela só pode ser significada pela intensidade e beleza da sua unidade. Com a PNH acontece o mesmo. Ela não pode ser reduzida à aplicação técnica desse ou daquele dispostivo. Se tal coisa acontece, a estética da ação criativa do homem fica reduzida à podridão da inércia, à burocracia aprisionadora do gesto. Reduzir as ações à implantação de uma "técnica" faz com que o sorriso acolhedor seja disfarçado em instrução do manual e as cores, que separam e unem os usuários numa emergência em caixinha de guardados onde ficam aprisionadas a vulnerabilidade e  as dores humanas.

Deixemos  pois a mosca no seu vôo e vamos aprendendo a voar com ela!