A tenda do conto: Um espaço aberto para a sua história nas unidades de saúde de Natal-RN
No aparelho de som Patativa do Assaré nos convida a escutar: “seu doutô me dê licença prá minha história contar…”
Profissionais de saúde e usuários começam a arrumar a “tenda”, que é, na verdade, a simulação de uma sala de estar à moda antiga montada no galpão da unidade de saúde. Uma mesa exibe fotografias antigas, poemas, cartas, caixas de madeira, vasos, livros e muitos outros objetos trazidos pelos usuários. Uma colcha de retalhos confeccionada pelos agentes comunitários de saúde conta fragmentos de suas histórias; os discos de vinil decoram as paredes da sala e no centro deles estão registradas algumas frases ditas – pérolas delicadamente colhidas nos encontros anteriores. As cadeiras são postas em roda, mas uma delas, à frente da mesa, seduz mais intensamente os convidados: uma cadeira de balanço cuidadosamente coberta por uma manta que aquecerá os contadores de histórias daquele dia.
Seu Olívio trouxe um livro: aos 48 anos aprendeu a ler e, hoje, aos 74 lançou seu primeiro livro – sua vida contada em versos;
Dona Cleide pôs na mesa uma foto sua de quando fazia quimioterapia; relata que graças aos amigos e ao sistema de saúde pública venceu o câncer de útero;
Lúcia fala dos preconceitos e dificuldades que enfrenta por ter uma filha com síndrome de down;
Maria do Rosário fala da infância que não teve; de como gostaria, quando criança, ter sido chamada de “minha Filha”;
Dona Geralda trouxe uma cesta de vime. Na adolescência, enquanto as amigas se divertiam na pracinha, ela saía de porta em porta com sua cesta de sonhos. A venda dos doces era a alternativa encontrada para ajudar sua mãe a “criar” os irmãos;
Seu Paulo trouxe as abotoaduras usadas no dia do casamento e declama um poema para a companheira que se foi…
No final, avaliação do encontro e sugestões para o próximo. Entre abraços e aplausos nos despedimos ao som do violão, conscientes de que outra história está apenas começando.
A Tenda do Conto nos surpreende sempre. Impossível prever o que vai acontecer no decorrer de cada encontro. A construção é ali e agora – puro “trabalho vivo em ato”. Cada história traz o poder de nos re-ligar ao universo da alma humana. Muitas estão registradas em nossas memórias, outras em um caderno no qual escrevo de vez em quando.
As equipes da Unidade de Saúde do Panatis e de Soledade I, região Norte de Natal, iniciaram este trabalho nas reuniões com os idosos, mas diante da presença de pessoas mais jovens, a tenda transformou-se em espaço aberto para todos e agora é itinerante, passando por outras unidades pertencentes a outros distritos.
Estamos tecendo redes de apoio e solidariedade; fortes nós que entrelaçam vidas, reduzem distâncias e aprofundam vínculos; aprendizado constante com pessoas que reinventam a vida saindo do anonimato e tornando-se protagonistas a nos seduzirem com palavras, olhares e gestos. Estas pessoas não mais serão apenas “pacientes”.
Por fim, convido todos da rede para entrar nessa roda de histórias. Afinal, como fazer uma tenda do conto? É simples. Com uma grande caixa repleta de objetos velhos, uma cadeira de balanço, uma equipe que acredite na construção coletiva e esteja disposta a “co-mover-se” exercitando a arte de ouvir.
Por Erasmo Ruiz
Cara Jacqueline! Que experiência linda! Quanto da beleza econhecimento do senso comum se perde por este Brasil a fora! O velho Gramsci nos alertava que o senos comum tem o seu núcleo de bom senso. Basta que a gente preste um pouquinho de atenção pra perceber o quanto se aprende em PSF, o quanto de saber ancestral pode virar remédio com patente americana, o quanto a experiência viva produz saúde e alegria, o quanto podemos e devemos produzir espaços de expressão de quem teve quase sempre a voz tolhida! Parabéns por trazer algo tão lindo para esta rede. Tomo a liberdade de deixar o poema do Patativa. Que o seu chamamento nos incentive a fazer mais e mais tendas!
Vaca Estrela e Boi Fubá
Patativa do Assaré,
do LP "A Terra é Naturá"
Seu doutor me dê licença pra minha história contar.
Hoje eu tô na terra estranha, é bem triste o meu penar
Mas já fui muito feliz vivendo no meu lugar.
Eu tinha cavalo bom e gostava de campear.
E todo dia aboiava na porteira do curral.
Ê ê ê ê la a a a a ê ê ê ê Vaca Estrela,
ô ô ô ô Boi Fubá.
Eu sou filho do Nordeste , não nego meu naturá
Mas uma seca medonha me tangeu de lá pra cá
Lá eu tinha o meu gadinho, num é bom nem imaginar,
Minha linda Vaca Estrela e o meu belo Boi Fubá
Quando era de tardezinha eu começava a aboiar
Ê ê ê ê la a a a a ê ê ê ê Vaca Estrela,
ô ô ô ô Boi Fubá.
Aquela seca medonha fez tudo se atrapalhar,
Não nasceu capim no campo para o gado sustentar
O sertão esturricou, fez os açude secar
Morreu minha Vaca Estrela, já acabou meu Boi Fubá
Perdi tudo quanto tinha, nunca mais pude aboiar
Ê ê ê ê la a a a a ê ê ê ê Vaca Estrela,
ô ô ô ô Boi Fubá.
Hoje nas terra do sul, longe do torrão natá
Quando eu vejo em minha frente uma boiada passar,
As água corre dos olho, começo logo a chorá
Lembro a minha Vaca Estrela e o meu lindo Boi Fubá
Com saudade do Nordeste, dá vontade de aboiar
Ê ê ê ê la a a a a ê ê ê ê Vaca Estrela,
ô ô ô ô Boi Fubá.