O lento caminho entre o dever no papel e o direito na prática
Leia matéria publicada nesta quinta-feira (2) pelo jornal O Estado de São Paulo sobre o processo de consolidação dos direitos à saúde previstos na Constituição Federal.
O lento caminho entre o dever no papel e o direito na
prática
O taxista Wilson Roberto dos Santos acreditou que o Sistema Único de Saúde (SUS) funcionava bem. Há três anos, parou de pagar o plano de saúde que manteve por 22 anos. Há seis semanas, sentiu-se mal quando dirigia. Estacionou num hospital da Penha, zona leste de São Paulo, e foi ao pronto-socorro. Gostou do atendimento. Depois de dez horas no hospital, saiu com a pressão em ordem e a recomendação para consultar um cardiologista do SUS.
Foi marcar consulta na Unidade Básica de Saúde (UBS) perto de casa, em Cangaíba, zona leste, e descobriu que antes tinha de tirar uma carteira. Tirou. Esperou quatro horas até o computador voltar a funcionar para agendar a consulta com o cardiologista para 30 dias depois, no Hospital São Paulo, zona sul. No dia, chegou pontual, às 7h30; foi atendido às 9. O médico pediu um cateterismo. Teve de retornar à UBS em Cangaíba para marcar o exame. Recebeu um papelzinho com a anotação: volte à UBS em dezembro para saber a data. "Até lá, eu morro", desola-se Wilson.
O caso de Wilson é um um retrato trágico da falta de atendimento de saúde para moradores das periferias das metrópoles. Mas os números da saúde antes e depois do SUS apontam na direção contrária. Antes de 1988, quem não tinha carteira assinada não era atendido nos hospitais conveniados e filantrópicos, lembra Carlos Mosconi (PMDB-MG), relator da Subcomissão de Saúde da Constituinte.
No âmbito do atendimento universal previsto pelo SUS, a mortalidade infantil caiu pela metade entre 1990 e 2005. No Nordeste, em 1990, morriam 87,3 crianças em cada mil nascidas vivas até os 5 anos; em 2005, eram 38,9. No País, morriam 53,7 e agora morrem 28,7 – 46% a menos.
Várias razões contribuíram para isso, mas a principal, aponta a socióloga Elizabeth Barros, consultora do Ipea, foi a disseminação, pelo SUS, dos serviços de atendimento pré-natal e atenção básica para a infância. No Nordeste, onde a rede de saúde tem uma presença privada reduzida, o SUS teve de expandir mais a sua capacidade, diz Elizabeth. Uma solução simples – a disseminação da fórmula do soro caseiro – reduziu drasticamente as mortes de crianças por diarréia.
Mas o fator mais importante, assegura a consultora, foi o espírito de ampliação de serviços estimulado pelo conceito do "dever do Estado", incluído na Carta. "A saúde entrou na agenda do Estado", diz. Estudiosa do setor há quase 30 anos, ela garante: "O SUS fez diferença – e muita. " Ajudou, por exemplo, a melhorar a expectativa de vida do brasileiro, de 66,9 anos, em 1991, para 72,1, em 2005, melhoria mais expressiva no Nordeste, onde, em média, a população vivia até 62,8 anos em 1991 e em 2005 passou a viver até os 69.
Nesse processo, diz Elizabeth, mudou o perfil da atenção da saúde. Desde os primeiros anos após a Constituição, seguindo outra norma inaugurada por ela – a descentralização -, municípios e Estados passaram a assumir papel preponderante, substituindo o governo federal. Em 1990, a União participava com 72,7% do financiamento da saúde, os Estados, com 15,4%, e os municípios, com 11,8%. Em 2005, a União respondia por 49,9%; os Estados, por 23,1%; e os municípios, por 27%. De 1992 a 2005, surgiram no Brasil 27.388 estabelecimentos de saúde; 23.887 deles eram municipais.
As transferências do Ministério da Saúde para Estados e municípios crescem sem parar desde 1996. Naquele ano, os repasses foram de R$ 400 milhões para Estados e R$ 2,9 bilhões para municípios, diz o Ipea; em 2005, os Estados receberam R$ 9 bilhões e os municípios, R$ 14,8 bilhões.
A idéia de um atendimento de saúde "universalista, gratuito, equânime e descentralizado", almejado na Constituinte pelos setores de esquerda, ainda enfrenta muitos obstáculos, mas está no caminho certo, mostram os números. O principal problema ainda é o financiamento do sistema, insuficiente para consertar deficiências seculares.
A primeira saída para garantir recursos para o setor foi a criação da CPMF, extinta este ano. Agora, as esperanças de um financiamento sólido estão centradas na Emenda Constitucional 29, de 2002, que destina ao SUS, anualmente, a verba federal do exercício anterior mais o porcentual de variação do Produto Interno Bruto (PIB); Estados ficam obrigados a aplicar 12% da receita tributária e municípios, 15%. Mas a regulamentação da Emenda 29 se arrasta lentamente no Congresso.