A judicialização da saúde
Artigo interessante publicado nesta segunda-feira (6) pelo jornal Estado de Minas sobre um dos desafios que o Sistema Único de Saúde ainda enfrenta aos 20 anos: garantir a integralidade preconizada pela Constituição nos marcos da democracia brasileira.
A judicialização da saúde*
Inúmeras decisões judiciais vêm obrigando os entes governamentais a fornecerem determinados medicamentos, ou a executarem procedimentos médicos, cujos aportes financeiros para efetuar tais pagamentos chegam a alcançar cifras astronômicas
Com o advento da Constituição Federal de 1988, a saúde passou a ser, de maneira explícita, direito fundamental social, ficando consignado que este direito é de todos, indistintamente, constituindo-se em dever do Estado assegurar o acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde, os quais devem integrar uma rede regionalizada e hierarquizada, constituindo-se num sistema único (SUS) organizado de acordo com a diretriz do atendimento integral.
Nessa seara, há que se destacar que o direito à saúde não abrange apenas a assistência médico-hospitalar, limitado aos pressupostos de oferta de procedimentos e medicamentos. O conceito de saúde não se limita apenas à ausência de enfermidade, mas consiste num estado de completo bem-estar físico, mental e social, nos termos da definição construída pela Organização Mundial da Saúde. Isso implica entender que ao Estado não cabe apenas promover medidas curativas com ofertas de procedimentos (exames, cirurgias etc.) e medicamentos (ainda que de última geração), mas também as preventivas como políticas de saneamento básico, vigilância sanitária, desenvolvimento de áreas de lazer, até mesmo segurança pública, no objetivo de cumprir o mandamento constitucional em apreço.
Em que pese o dever do Estado de garantir o acesso a serviços e ações de saúde, a demanda pelos mesmos é maior do que pode suportar, gerando insatisfações tanto individuais quanto coletivas, que acabam por desaguar no Poder Judiciário, que muitas vezes é chamado a intervir em impasses desta natureza, para que decida se, neste ou naquele caso, o ente público deveria ser obrigado a prestar o atendimento nos moldes dos pleitos formulados.
Em várias ocasiões, sensibilizado pelas alegações dos interessados em obter certa prestação estatal que não estaria sendo realizada satisfatoriamente pelo poder público, o Poder Judiciário ordena que esta providência seja executada, desconsiderando, muitas vezes, as fundamentações apresentadas pela administração pública de que, naquele momento, estaria impossibilitada de implementar determinadas medidas, ante a patente e inquestionável falta de recursos humanos, materiais ou financeiros, desencadeando, a partir de decisões dessa estirpe, sérios problemas.
Tal situação acaba por gerar um conflito entre os poderes Executivo e Judiciário no quese refere à autonomia de cada um. Inúmeras decisões judiciais vêm obrigando os entes governamentais a fornecerem determinados medicamentos, ou a executarem procedimentos médicos, cujos aportes financeiros para efetuar tais pagamentos chegam a alcançar cifras astronômicas, trazendo grande impacto econômico para a administração pública, que se vê obrigada a destinar recursos de determinados projetos também importantes para a sociedade para o cumprimento daquela decisão judicial.
O Poder Judiciário, por mais bem intencionado que esteja no intuito de conferir cabal aplicabilidade a determinadas normas legais, não pode pretender arvorar-se da tarefa de tentar suprir todas as carências sociais, mediante a expedição de uma ordem judicial, face à inexistência de condições materiais capazes de viabilizar sua eficaz implementação. Para a implementação de certas diretrizes legais (sejam constitucionais ou infraconstitucionais), mormente no que tange àquelas que exigirão iniciativas positivas (ativas) e materiais do Estado, cumpre que os órgãos jurisdicionais atentem – ao proferir alguma decisão – para a circunstância de haver ou não meios materiais disponíveis para sua concretização.
A precipitação em querer implementar, sem a observância de qualquer tipo de limites, uma dada prestação social poderia gerar o efeito contraproducente de inviabilizar o atendimento de outras necessidades coletivas, para as quais já havia um prévio planejamento/orçamento, mas que fatalmente ficará comprometido com o desvio, por exemplo, dos aportes financeiros que seriam destinados ao seu suprimento, para se satisfazer aquela prestação em favor da qual a ordem judicial teria sido emitida. Além de, à evidência, ferir o princípio da separação de poderes, pois cabe ao legislador elaborar a peça orçamentária, definindo quais são as prioridades que entende ser as mais urgentes naquele dado momento. Não cabe, pois, ao Judiciário ditar, ao seu livre talante, para onde e como devem ser direcionadas as forças patrimoniais dos orçamentos públicos, que não tenham uma destinação legal e previamente definida.
Contudo, enquanto o direito à saúde estiver sendo negligenciado pelo poder público, caberá ao Judiciário a indeclinável tarefa de, lastreado na parcela de soberania que lhe cabe no conceito da tripartição dos poderes, assegurar, pela via coativa, que o Executivo desincumba-se das prestações a ele constitucionalmente atribuídas, dentre as quais se destacam as prestações na área dos direitos sociais, em benefício da população a que deve servir. E é por meio do Sistema Único de Saúde que o Estado deve tornar efetivo este direito, proporcionando aos seus usuários um atendimento médico, hospitalar e farmacêutico integral e de qualidade.
Judiciário e Executivo vêm tentando, cada um, fazer o seu melhor afim de implementar o acesso detodo cidadão à saúde, proporcionando, como conseqüência, a dignidade a que todos têm direito. Porém, tal tarefa não é simples e é preciso cuidado para não se cometer injustiças tanto no âmbito individual quanto coletivo.
*Ivana Mariz Carvalho Bahia, Advogada especializada em Direito Administrativo, sócia-gerente do Departamento de Direito Administrativo do escritório Manucci Advogados