Pelos caminhos de Adélia

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Pelos caminhos de Adélia

Na Unidade de Saúde, os profissionais comentavam sobre os tumultos que Adélia provocava cada vez que por lá aparecia, negando–se a esperar pelo atendimento e dirigindo–se a todos de maneira agressiva.

Em visita à sua casa…

A sala estava arrumada, as cadeiras cobertas com panos de estampas vivas. O cheiro do tecido novo anunciava que tudo fora previamente arrumado para nos receber. Na parede da sala havia uma cortina improvisada, de grandes flores coloridas, que o menino menor logo arrancou com um pequeno puxão. As paredes desnudas mostravam os buracos e os rebocos inacabados. Ela, cuidadosamente vestida e perfumada, começou a revelar suas feridas… Tem 42 anos, estudou até o quinto ano do ensino fundamental. São 11 pessoas numa casa com sala e banheiro. Revela que usa diazepam há dez anos e que a renda da família é em torno de quatrocentos reais, provenientes do programa bolsa – família e do trabalho de uma das filhas como diarista. O filho mais velho está em situação de dependência química e saiu de casa depois de ter agredido a irmã. À noite, Adélia imagina que ele esteja ao relento, enquanto ela e os outros dez dividem as cobertas. Sem pudores de mostrar a falta de vários dentes, alarga o sorriso ao falar do seu novo amor, o companheiro que lhe dá afeto “de vez em quando”. 

Quando a chuva começou a cair, a água escorria do teto em goteiras por toda a casa e ela nos puxou para um canto onde ficássemos protegidas da chuva. Lá fora, uma porta quebrada sobre latas velhas funcionava como um tobogã para os netos que, agarrados uns aos outros e entre gritos e risos, caíam nas poças de água deixadas pela chuva.

"Quando eu me aperreio muito, eu tenho que sair de dentro de casa. Às vezes eu saio com o menor puxando pela mão, vou bater lá na Avenida das Fronteiras, só andando […]. Esqueço até do tempo! Volto pra casa quando todos estão dormindo, aí já me sinto outra” (Adélia).

As razões da alma levam-na a caminhar. Os passos de quem caminha por razões da alma seguem trilhas que conduzem ao encontro com os sentimentos. A noite ficou tranquila; o vento acalentava as lembranças perdidas que faziam Adélia voltar à infância quando tinha aquele olhar de quem olha tudo pela primeira vez, revelando um brinquedo no vento, nas folhas, nas pedras. Aos olhos da alma, tudo parecia se transformar em beleza, e os caminhos percorridos tantas vezes iam se revelando sob os olhos como se fossem desconhecidos. As árvores não eram as mesmas que ela conhecera e os sons da rua pareciam diferentes. Apertando a mão do filho, mergulhou na leveza dos seus passos. Roubando os olhos do seu menino, ela descobria um mundo que esqueceu de revisitar; agarrava-se agora às imagens que se mostravam diante dos seus olhos: as folhas secas faziam música sob seus pés e a noite tinha cheiro de abraço. Seus passos caminhavam em direção à sua alma num acariciar silencioso que a desprendia dos deveres de mãe e a desobrigava das responsabilidades. O tempo voltava-se para a missão de devolver-lhe os dias que não foram seus dissipando o cansaço do seu corpo. Seus pés seguiam em direção a si mesma permitindo que a alma se perdesse pelas ruas que agora eram suas. Entregava-se, enfim, à liberdade e ao prazer de sentir-se viva… Voltou pra casa sem querer chegar, como uma estrela cadente que, tendo que cair, não escolhe o lugar. Naquele dia, não precisou do remédio para conseguir dormir.

(Este texto faz parte da dissertação Beirando a vida, driblando os problemas: estratégias de bem viver orientada pela professora Raimunda Medeiros Germano – UFRN). Para acessar na íntegra:

  https://bdtd.bczm.ufrn.br/tedesimplificado/tde_arquivos/5/TDE-2008-09-17T040434Z-1427/Publico/MariaJAG.pdf