Histórias que a TV não contou
Um não sei quê de dor e de alegria,
Desejo de chorar, se alegre venho,
É um nada que é tudo e não sacia,
É tudo quanto dou e nada tenho.
Palmyra Wanderley
Era um dia chuvoso. A agente de saúde chegara à minha sala com as roupas encharcadas e o olhar atônito. Descobrira, em sua área, uma paciente em surto que havia expulsado a família de casa, ateou fogo no colchão e ameaçava com uma tesoura (a mesma que utilizada para cortar os próprios cabelos), qualquer pessoa que tentasse se aproximar.
Diante do relato, saímos os três (eu, o médico da equipe e a agente de saúde) para a visita domiciliar, sem sabermos, de fato, o que iríamos fazer e temerosos do que poderia acontecer.
A mãe, Dona Palmira, nos atendeu pelo portão semi-aberto do beco ao lado da casa, lugar para onde havia transferido o fogão, algumas roupas e as redes. Todos os outros objetos da casa haviam sido destruídos pela filha. Pedia que fôssemos embora e que, em nenhuma hipótese internaria sua filha. Respondemos que estávamos lá porque queríamos ajudá-la de algum modo e prometemos que Elisa, sua filha, não seria internada sem o seu consentimento.
Após uma conversa de dez minutos que pareceu uma eternidade, ela resolveu abrir o portão. Lá dentro, em meio aos objetos que foram amontoados e salvos apressadamente, conversamos longamente, interrompidos apenas, pelos gritos de Elisa que se empenhava cada vez mais em nos expulsar dali com xingamentos, ameaças e palavrões. Palmira tem 62 anos, não é alfabetizada. Além de Elisa, tem outras duas filhas. É casada há 46 anos e durante todo esse tempo tem convivido com várias formas de violência e com o alcoolismo do marido. Descreve o casamento como uma prisão e relata que só se sente feliz quando ele sai de casa. Ele é o único provedor da família, é aposentado, mas continua trabalhando para aumentar a renda e nunca permitiu que as filhas trabalhassem. Acredita que a filha Elisa está possuída por um espírito ruim que veio castigá-la.
Tentamos conversar com Elisa pelo lado de fora da casa, mas não conseguimos. O médico solicitou à Palmira que introduzisse a medicação prescrita junto à comida que ela colocaria debaixo da porta. Não conseguimos psiquiatra ou psicólogo para nos acompanhar, apesar de várias tentativas. Durante dias seguidos estivemos lá no mesmo horário para visitá-las.Começamos a conversar com Elisa, ainda pela porta fechada, após a terceira visita. Percebemos, na ocasião, que ela havia tomado banho e se vestido. Seguimos com a nossa “conduta” por mais alguns dias até que, antes que fôssemos lá novamente, encontramos as duas a conversar na porta da unidade de saúde à nossa espera.
As duas estão entre as mais assíduas nos trabalhos coletivos da unidade.
Em casa, ligo a televisão e assisto, estarrecida, no jornal local, ao crescente movimento nacional por mais leitos psiquiátricos e que se intensifica, também, aqui em Natal.
Rememoro as difíceis situações enfrentadas nas unidades básicas com as demandas de saúde mental. O medo do desconhecido, de lidar com o paciente em crise, de chegar perto ou mesmo de dirigir-lhe a palavra resulta, muitas vezes, numa fuga desenfreada a este tipo de demanda.
Penso, porém, o quanto teria sido trágica para Elisa e sua família, a experiência da internação no hospital psiquiátrico. Penso, ainda, nas histórias que dão certo, vivenciadas pelos trabalhadores de saúde mental e usuários por esse Brasil a fora e que nunca saíram na TV. Não creio que aumentar o número de leitos psiquiátricos seja a saída para essas questões, mas a articulação entre CAPS e atenção básica, o investimento em uma verdadeira rede substitutiva, a valorização dos trabalhadores por meio da educação permanente…
As vontades andam adormecidas pelo cansaço, pela sensação de impotência causada, principalmente, pelas circunstâncias contextuais e políticas que ora se desenham diante dos nossos olhos temerosos do que está por vir…
Em busca de ânimo, saí para ouvir Eduardo Passos. Em sua fala, ele provoca a saída desse lugar. Combinando habilidade, sabedoria e bom humor, abre a “caixa de ferramentas” da PNH e nos instrumentaliza despertando a vontade de continuar na militância, de mudar o instituído, de subjectivar os objectos, de tecer redes de resistência e ativar mudanças.
Respiro fundo, tomo fôlego!
Sigamos em frente…
Por Cláudia Matthes
pequenos-grandes movimentos que nos fazem entender que a vida vale a pena e que nos dão fôlego para continuar a caminhada.
O lindo da loucura é se aceitar inteiro,dividido,sem a procura da "batida perfeita"!
Beijos
Cantadora de Baião.
Com carinho
Cláudia