Quando Termina o Sentimento Religioso e Começa o Obscurantismo!
Igreja excomunga responsáveis por aborto de menina de 9 anos
Temas como o aborto, a eutanásia e repercussões sobre novas tecnologias de reprodução humana ("barrigas de aluguel", gravidez após menopausa etc) desdobram complexas discussões que tendem a ultrapassar argumentos racionais posto que assumir-se um posicionamento pró ou contra siginifica, em úiltima instância, falar ao mundo quem somos, atuando portanto com nossos afetos, medos, angustias e ansiedades.
Ainda assim, não podemos nos manter calados quando pessoas movidas por sentimentos religiosos correm o risco de apregoar o contrário daquilo que seus princípios dizem defender. A notícia abaixo mostra o quanto o zelo religioso da manutenção da integridade de determinados princípios pode na verdade acirrar a produção da dor e do sofrimento. Tentar obrigar uma criança de 9 anos de vida a continuar grávida depois de violentada pelo próprio padrasto e, ainda, sujeitar os trabalhadores de saúde que subteram a criança a um aborto à pena de excomunhão apenas demonstra que o obscurantismo pode se disfarçar nas melhores intenções.
Antes que me esqueça, o Arcdebispo de Olinda, embora tenha excomungado os trabalhadores de saúde, não emitiu qualquer gesto de censura contra o padrasto da criança. Pelo visto, o fato da menina não ser mais uma célula ou um embrião parece não mobilizar o sentimento de proteção de tão renomado religioso, sendo muito difícil para ele tipificar o estupro de uma criança de 9 anos como um crime atentatório contra a vida.
Um dia a história demonstrará que além dos crimes da Inquisição, a Igreja Católica poderá ser responsabilizada também pelo alastramento da epidemia de AIDS na África por conta do seu zeloso combate ao uso de preservativos. Assim, uma religião que apregoa a defesa irrestrita da vida pode, quando movida pelo obscurantismo de alguns de seus membros, ser o instrumento produtor da morte e do sofrimento. Como nos alertava Goya no final do século XVIII – em crítica as atividades da Igreja Católica na Espanha e a sua asquerosa Santa Inquisição – "O Sono da Razão Produz Monstros"!
Notícia emcontrada em
Transcrição da Notícia:
Ana Lima Freitas
Direto do Recife
O arcebispo de Olinda e Recife, d. José Cardoso Sobrinho, condenou a interrupção da gravidez da menina de 9 anos que teria sido estuprada pelo padrasto, na cidade de Alagoinha, no agreste de Pernambuco. Segundo d. José, os responsáveis pelo aborto estão excomungados da Igreja Católica.
Durante a madrugada de hoje, os advogados da arquediocese de Olinda e Recife haviam preparado uma denúncia que deveria ser encaminhada ao Ministério Público, mas desistiram da medida depois da divulgação do aborto.
A menina, que estava internada no Instituto Materno e Infantil de Pernambuco (Imip), recebeu alta na noite de ontem, quando foi novamente internada no Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), no bairro da Encruzilhada. Lá, a garota tomou medicamentos para começar o processo. Na manhã de hoje, os dois fetos foram expelidos. O Cisam não informou quem integrou a equipe responsável pelo aborto e o arcebispo não citou nomes dos excomungados.
Por volta das 16h30 da tarde de hoje, os médicos do Cisam realizaram uma curetagem (raspagem) para retirar o material placentário do útero da menina. O estado de saúde dela é estável. A garota não corre risco de vida e se encontra na sala de recuperação da unidade. Após a se recuperar da anestesia, ela será levada para a enfermaria. A previsão de alta é de 24 a 48 horas após a curetagem.
No próximo dia 7, quando será lançada a campanha da fraternidade da CNBB em Pernambuco, em uma missa na Basílica de Nossa Senhora do Carmo, d. José fará um manifesto público contra a interrupção da gravidez da menina estuprada pelo padrasto.
23 Comentários
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Por Erasmo Ruiz
Realmente a questão é muito complexa. Se tomarmos o paradigma da defesa da vida, apesar de toda coimplexidade, fica evidente que a vida a ser protegida era da criança. Nesse sentido, o aborto era antes de tudo uma intervenção terapêutica pois não faze-lo, dada a não maturação orgânica de uma menina de 9 anos, era expo-la a rissco certo de inúmeros problemas de saúde, sem contar a agravante da forma como a concepção ocorreu. Além disso, junta-se as muitas consequências psicológicas representadas por uma gravidez nesse período da vida e temos um quadro muito dramático. A questão bioética do aborto está posta na definiçãon de quando começa a vida de fato. Nesse sentido, chocam-se a Igreja e muitas perspectivas consideradas seculares (a científica por exemplo). O mais interessante é que não havia consenso na Igreja sobre o aborto ser um pecado grave até o início da segunda metade do século XIX quando essa questão foi regulamentada teologicamente. E, por mais que pareça paradoxal, parte dessa regulamentação embasou-se numa teoria científica ultrapassada, a teoria do "homúnculo", que afirmava a existência de um bebê íntegro dentro de cada espermatozoide. E, mais paradoxal ainda, para São Tomas de Aquino, o aborto não seria pecado até o bebê estar formado (contemporaneamente diríamos quando ele se tranasforma de embrião em feto). Tendo a concordar com São Tomas de Aquino. A questão primordial é arbitrar quando uma vida em potência teria adquirido estatuto e direito de ser mantida como vida com capacidade de exercício de autonomia.
Mas voltando à questão da menina de 09 anos, creio que determinados setores da Igreja se acham muito afastados dos dramas humanos. Acho inconcebível a excomunhão de médicos e da mãe da criança enquanto que os padres pedófilos da diocese de Boston nos Estados Unidos até agora NÃO SOFRERAM QUALQUER PUNIÇÃO DA IGREJA.
Um grande abraço e espero poder reve-la em breve!
ERASMO
Por Elias J. Silva
Companheiro Erasmo:
A Igreja está abortado o dialogo e a humildade que ela tanto apregoa, ao impor uma visão totalitária sobre questões tão complexas.
Do ponto do vista dos seus princípios ela se coloca de forma absolutista e assim amesquinha a caridade. É o caso de se afrimar que o Concílio de Trento suplantou o Vaticano II e que certos bispos e religiosos vivem de fato esse obscurantismo nas suas práticas e conceitos.
O caso do Bispo de Pernambuco faz a gente também refletir: como teria agido neste caso o Profeta Dom Hélder Câmara, Dom Aloísio ou Dom Paulo Evaristo?
Um tal bispo Aldo Pagoto da Paraíba também está aprotando das suas, ao suspender de ordem um religioso que exerce a sua cidadania e defende o respeito às minorias. O tal Aldo Pagoto não demonstra nenhuma coerência quando toma o partido dos donos de terra e sai em defesa dos latifundiários, além de receber grade volume de recursos do Governo (leia-se ex-Cassio Cunha Lima) e não dar transparência para a sociedade.
Abraços,
Elias
Por Erasmo Ruiz
Muitas saudades de ti meu amigo! De fato, existem setores da ICAR extremamente conservadores. Nos últimos dias esteve em evidência o grupo tradicionalista sediado na Argentina e na Bélgica que foi reintegrado a Igreja pelo Papa e, já de saída, fez o papa passsar vergonha ao questionar a existência do holocausto dos judeus durante a segunda guerra mundial. Sinto muita falta de Dom Helder. No início da minha militância política estive dentro de algumas CEBs e Dom Helder era sempre uma luz e um alento para todos nós que víamos na Teologia da LIbertação uma bela utopia. ESsa situação toda de Olinda me deixa enojado. Insisto que, se devemos defender a vida, como não levar em consideração a vida de uma criança de 09 anos que ficou grávida VIOLENTADA pelo padrasto? Creio que a medida de excomunhão feita pelo arcebispo menosprezou o drama vivido por esta criança e por sua família.
Abraços do ERASMO
Por catia martins
Excelente o texto e o Goya.
Já estamos fartos do moralismo cristão!
um abraço, Catia
Por Erasmo Ruiz
Já que gostas de Goya (eu adoro) mais duas imagens. A primeira da série de Gravuras intitulada "Caprichos" (podendo no caso dessa gravura ser lida como a forma como a obscuridade pode nos devorar) e a segunda uma pintura chamada de "O Pedreiro ferido" (inspirada numa anterior que bbrincava com a idéia da embriaguês que, na nova pintura, se transforma no drama da dor). Ah, concordo contigo sobre o "moralismo" como tendência que intenta pautar a vida daqueles que não compartilham de determinada moralidade a partir de uma interpretação estreita e imperativa, mas há que se ter cuidado para não se jogar a criança fora com a água do banho posto que muito dos nossos comportamentos embasados na idéia de solidariedade e fraternidade possuem inspiração cristã.
Bj do ERASMO
Por catia martins
Obrigada pelas gravuras. Adorei!
Sim, temos q tomar cuidado com não jogar a criança fora com a agua do banho (tb adoro esse dito popular!!!). E somos cristãos demasiadamente cristãos…. No entanto, compaixão e amor ao próximo são diferentes de solidariedade genuina.
P/ o Nietzsche, nossos benfeitores diminuem nosso valor e nossa vontade muito mais que os nossos inimigos.
um abraço, Catia
Por Erasmo Ruiz
Tem coisas que apesar de envelhecerem não envelhecem nunca. Acho que precisamos um pouco de Nietzsche para questionar nossas certezas inabaláveis e, sob certo prisma, essa frase parece muito genuína. No entanto, não me importa muito se a mão que me segura na beira do pricipício seja de um bom samaritano ou de um inimigo que num gesto absolutamente felino me salva para continuar lutando comigo. Aliás, os gestos de bondade genuina são sempre narcísicos e isso talvez Nietzsche nunca tenha percebido, ou seja, as pessoas fazem o bem porque isso lhes é prazeroso e não porque um deus qualquer tenha lhes ordenado isso. É esse o fator funcional das sociedades que vivem o paradigma da dádiva: ajudam porque é bom ajudar para ser depois ajudado. "Vixi", tô viajando na maionese. Grande bj Cátia!
ERASMO
Caro Erasmo
Que bom que pessoas como vc conseguem escrever sobre estes assuntos, expressando nossos sentimentos. Quando penso na menina, só consigo sentir vergonha de ser Humana, com H maiúsculo, que é aquela faceta do humano que convive com o inominável. Argh!!!!!!!!!!
Por Erasmo Ruiz
Talvez esse seja o grande desafio: "conviver com o inominável". Trabalhar como humanização exige isso de nós o tempo todo, principalmente quando se percebe que o "inominável" já tem "nome" e começa ganhar a (des)graça de ser algo "natural". Mas a julgar pelas manifestações que temos visto nesse caso específico, parece que mesmo a maior parte dos críticos da legalização do aborto esbarram no limite do bom senso, ou seja, não se pode exigir que uma criança de nove anos vítima de toda forma de abuso seja obrigada a continuar grávida de gêmeos. Defender o posicionamento do bispo (fora de suas delimitações teológicas como bem destaca o Ayala Gurgel em seu comentário) seria como dizer implicitamente que se essa criança fosse nossa filha, nós iríamos desejar que ela continuasse grávida. Abraço do ERASMO
Por Erasmo Ruiz
O milagre não é dar vida ao corpo extinto,
Ou luz ao cego, ou eloqüência ao mudo…
Nem mudar água pura em vinho tinto…
Milagre é acreditarem nisso tudo!
Mario Quintana
Minha solidariedade aos profissionais de saúde que realizaram a intervenção e prestaram a assistência devida. Na minha opinião, equipe, criança e família partilharam dessa dor em verdadeira comunhão!
Penso também nas muitas mulheres, que, infelizmente, não saem com vida ao buscarem assistência nas clínicas clandestinas. Alivia-me o fato da família ter agido segundo a lei…
Saudades de Dom Hélder…
Jacqueline
Por Erasmo Ruiz
Quanta saudade de ti!!!! Fiquei esse tempo todo curtindo as paisagens de um grande livro! Mas te respondo afirmando que também me solidarizo com os profissionais, aliás, exemplos de trabalhadores de saúde! Estão de parabéns! Bj do ERASMO
Caro Erasmo
Existem muitas coisas que não entendo, dentre as quais a importância que as instituições laicas ainda dão às doutrinas religiosas. Aliás, entendo e até explico em meu trabalho intitulado Curso de Axiologia Analítica: trata-se da intersecção das esferas axiológicas, muito comum em sociedades democráticas. Justamente, em nome dessas sociedades, quero DEFENDER o ato de Sua Excia EXCOMUNGAR quem bem ela entender.
Eu mesmo sou produto da liberdade que a Igreja tem de escolher quem ela quer ou não nos seus quadros: fui considerado suficientemente infiel e incrédulo para pertencer ao seu quadro, sendo expulso no dia 04 de novembro de 1984. E acredito que ela fez o certo…
Em nome da liberdade de pensamento, de práticas religiosas (inclusive as satânicas), da livre associação às agremiações de qualquer ordem, defendo que a Igreja tem o direito de excomungar e expulsar quem ela quiser e porque o quiser, bem como o direito de ser hipócrita. Quem for católico e quiser assim se manter deve entender isso. Trata-se de uma questão de economia doméstica, de assunto para teólogos mesmos! No entanto, não temos a obrigação de sermos católicos nem de considerarmos as suas decisões fora dessa seara.
Os católicos são obrigados a considerar certas regras, faz parte da sua cartilha. Insatisfeitos? Mudem de Igreja ou mudem a Igreja. Mas, não me peçam para que eu me interesse por suas questões domésticas, de ser contra ou a favor do que é objeto interno de conduta religiosa.
Incomoda-me, somente quando essa Igreja quer impor à sociedade, que é plurirreligiosa, as suas ideias como se fossem as únicas ou as mais verdadeiras. Coitados, não percebem que a plurirreligiosidade não tem mais volta. Estamos em outra, já combinamos tantas esferas axiológicas que o monoarquismo axiológioso se tornou impossível, mesmo nas sociedades mais teocráticas (mesmo dentro do Vaticano há padres que são ou defendem os gays, os pedófilos, os abortistas etc) os valores não há mais homogeneidade axiológica.
Que Sua Excia excomungue ou expulse quem ela quiser é um direito seu e uma questão doméstica dos católicos, não é uma questão à qual eu ou o Presidente da República deva responder. Não nos diz respeito, até que se mantenha no plano interno de uma confissão religiosa.
Ao médico, excomungado, pode-lhe dizer respeito, no entanto, ele tem agradecido ao bispo por isso, pois, agora é livre para fazer tantos outros abortos, pena que a lei ainda não o seja, completamente.
Precisamos, definitivamente, separar a Igreja do Estado, para o bem da Igreja (ou melhor, das Igrejas) e do Estado (ou melhor, dos cidadãos laicos).
Oi Erasmo,
Certamente, a questão em tela é muito complexa e polêmica.
Sou católica e reconheço que a Igreja católica tem algumas contradições.
Diante desse fato, náo dá mesmo para entender a sua possição omissa em relação aos padres pedófilos de Boston. Esses sim merecem ser excomungados.
Também terei prazer em revê-lo
Um abração com novos votos de boas vindas!!
Emília
Oi Erasmo,
Certamente, a questão em tela é muito complexa e polêmica.
Sou católica e reconheço que a Igreja católica tem algumas contradições.
Diante desse fato, náo dá mesmo para entender a sua possição omissa em relação aos padres pedófilos de Boston. Esses sim merecem ser excomungados.
Também terei prazer em revê-lo
Um abração com novos votos de boas vindas!!
Emília
Por Erasmo Ruiz
Todo Brasileiro é de certa forma católico, ,mesmo que seja de outra religião. Os exemplos são tantos, estão na linguagem ("vixi maria"), nas festas (São João, São Pedro, São Genaro em São Paulo com muito macarrão), está posta no nome das praças e ruas (Todo bispo arcebispo e cardela será com certeza homenageado), está na beleza arquitetônica das igrejas e catedrais, está na arte popular, na oiteratura de cordel. Dessa forma, embora não professe hoje a religião, já me casei na Igreja e fui batizado. Ah, em breve estarei por ai (quinta-feira) Um grande abraço do ERASMO
Por Ricardo Teixeira
Olá Erasmo,
Que beleza de discussão que você sucitou, alimentando e reafirmando a vocação pluralista de nossa Rede.
Não sou muito chegado em nenhuma religião, embora me interesse muito por várias práticas espirituais, algumas ligadas a domínios religiosos. Mas isso é assunto pra outro momento…
Agora, quero apenas agregar mais uma contribuição a esta zona de discussão que você abriu na RHS, que é o comentário sobre esse episódio de um sacerdote cristão e teólogo, que achei muito tocante. O intuito é, como sempre, exconjurar (termo ótimo, nesse contexto, não?) qualquer sectarismo (outro termo pertinente) ou tendência a organizarmos "torcidas" contra ou a favor desta ou daquela posição, sempre insistindo na complexidade, na sutileza, no surpreendente…
A contribuição me chegou por e-mail enviado pelo nosso grande companheiro Eymard Vasconcelos, que dispensa apresentações, mas vale lembrar, educador popular e socialista cristão.
Fascinou-me nas reflexões deste teólogo, descobrir como um "sacerdote" pode ser, paradoxalmente, tão espinosano…
Veja só que bacana…
Esta é a resposta de Jean-Yves Leloup, autor de inúmeros livros, de várias traduções de textos canônicos e apócrifos das escrituras. Jean-Yves é ex-sacerdote católico, dominicano e, atualmente, é padre da Igreja Ortodoxa francesa. Abaixo inserimos interessante texto com respostas dele sobre o caso da menina estuprada por seu padastro em Olinda. Esta resposta foi dada em retiro no estado do Riode Janeiro.
Pergunta: Uma menina de nove anos é estuprada pelo padrasto e engravida. A justiça e a medicina concordam que ela não sobreviveria à gestação e concordam com o aborto. O arcebispo de Olinda excomungam todos os envolvidos no aborto desde a diretora do hospital ao motorista da ambulância, a enfermeira que desinfeta os instrumentos, médicos e a mãe da menina. Em sua opinião, como reatar a conexão com o Divino neste ato da Igreja Católica?
Jean-Yves Leloup: Nós poderíamos perguntar o que teria feito Cristo. Eu acho que Ele não teria escutado nem o juiz nem o arcebispo, Ele teria ido ver a menina para cuidar dela e escutar, naquele momento, aquilo que a Vida estaria Lhe inspirando.
É claro que se a vida da mãe e a vida da criança estão em perigo é preciso escolher que um dos dois sobreviva, se os dois não podem sobreviver. Depois, é preciso escutar o sofrimento desta menina e, o que pode ser ainda mais
difícil, saber o que conduziu o padrasto a esta atitude.
Contudo, tanto em um caso como em outro, nós não estamos em uma atitude de julgamento, em uma atitude onde devamos fazer isto ou aquilo. Trata-se de escutar a pessoa que está sofrendo, escutar aquilo que a Vida deseja nela, pois a vontade de Deus é a vontade da Vida que quer viver.
Como não acrescentar sofrimento ao sofrimento? O que pode nos parecer dramático é o fato da culpa ser acrescentada ao sofrimento – acrescentamos mal ao mal….
No Evangelho, nós nunca vimos Jesus excomungando alguém e, antes de tudo, será que é possível excomungar alguém? O diabo não pode nos separar de Deus se permanecermos fiéis à Sua Presença. Se o diabo não pode nós separar de Deus, um arcebispo também não!
Confesso que há alguma coisa que eu não compreendo nisto tudo: é este encadeamento de excomunhões. Se eu estivesse de mau humor, eu diria que a única pessoa que o arcebispo não excomungou é o padrasto que é o culpado…
No entanto, não é essa a questão. Nenhuma igreja, nenhum ser humano tem o poder de nos excomungar: Nós não podemos separar um ser da Fonte do Ser, não podemos separar a consciência da Fonte da Consciência, mas podemos envenenar e perturbar a vida dos outros…
Isso é grave. Normalmente, a função da igreja não é a de nos envenenar a vida, mas a de curar o nosso sofrimento, de aliviar a nossa dor. Aliviar a dor dessa menina, aliviar a dor daqueles que a cercam e não culpabilizar aqueles que estão tentando ajudá-la, pelo contrário, ajudá-los no seu discernimento para saberem o que é melhor para essa menina.
Essa é a função da igreja. Não é sua função condenar ou excomungar, senão ela se tornará uma instituição como qualquer outra que está a serviço do poder e o poder sobre as almas é algo muito perigoso, mais perigoso do que o
poder sobre os corpos. É por isso que sempre é bom voltarmos aos Evangelhos ou, simplesmente, voltar ao nosso coração e não nos deixarmos impressionar por leis externas, mesmo as leis religiosas. A lei a qual obedecemos é a lei da Vida e o espírito que está em nós é o Espírito da Vida. É isso que dirá
São Paulo. Não dependemos mais de leis externas. Trata-se de escutar a Vida em nós, de escutarmos a Luz em nós, de escutar o Amor em nós, de escutar a Presença do Eu Sou que É porque aí está o discernimento. No entanto,
algumas vezes é preciso coragem para encarar estas instituições que talvez estejam se esquecendo dessa dimensão do ser. Muitas vezes, estas instituições são vítimas de suas próprias ideologias.
É interessante escutar os argumentos do arcebispo de que não devemos destruir a vida. Mas vocês podem sentir que a sua teoria está separada da realidade. Seus grandes princípios, que não são ruins, esquecem aquele caso em particular. E existem apenas casos particulares. Não podemos legislar de
uma maneira geral porque o amor é sempre o amor por um caso em particular. O que é verdadeiro para um pode não ser verdadeiro para o outro. A nossa prática de meditação pode nos ajudar a nos tornar atentos a essa via interna, a essa lei interna, que não julga a priori, nem com princípios políticos, nem com princípios médicos, nem com princípios religiosos, mas que está em contato com a Realidade; que escuta o que a Vida em outra pessoa e o que a Vida em nós pede.
Talvez essa seja a condição para execermos um ato justo, uma condição que deixe o nosso coração em paz mesmo que, à nossa volta, nós não compreendamos. É importante o critério dessa paz interna, esse sinal de que existe uma unidade no interior de nós mesmos.
Penso nas palavras de São Serafim de Sarov: "Encontre a paz no interior de você mesmo e uma multidão será salva ao seu lado…"
Ache a paz no interior de você mesmo e você descobrirá o gesto justo que não vai ser uma ideologia, ou um grande princípio, mas o respeito pela Vida na sua fragilidade e na sua vulnerabilidade.
Teríamos muito a dizer sobre todas essas suas questões, mas o que eu acho importante é que cada um descubra a resposta que vem do seu interior.
Ninguém tem o direito de pensar no seu lugar. O papel de um ensinamento, o papel de uma comunidade ou de uma igreja não é dizer o que devemos fazer, aquilo que é bom e o que é ruim, mas de nos dar elementos para esclarecer o nosso discernimento, para que nós nos tornemos inteligentes, uma inteligência esclarecida e iluminada pela compaixão.
(os grifos são meus)
Por Erasmo Ruiz
Cada um de nós tem suas histórias. Minha relação com a religiosidade começou na adolescência. Quando tinha 12 anos assisti ao belo filme "Irmão Sol, Irmã Lua" do Franco Zefirelli falando sobre a vida de Francisco de Assis. Sai no cinema resolvido a me tornar um frade fransciscano, sonho que eu acalentei por mais de 3 anos, mas que logo descobri não ter condição alguma de sustentar. "Viajei" por várias seitas até ser "convertido" ao meu atual agnosticismo. De toda essa época restou simpatias éticas pelo budismo e pelo cristianismo do evangelho apócrifo de Tomé, que mostra um jesus filósofo, sem milagres e sem divindade, tentando sinalizar saídas práticas com base no amor e na solidariedade. Neste sentido, um dos muitos rótulos que eu poderia me dar seria o de um cristão sem deus! Achei lindo o texto de Leloup, autor que já conhecia por mutiliza-lo em minha disciplina de "Introdução à Tanatologia" na Universidade (ele tem belíssimas discussões sobre o resgate de uma nova "Arte de Morrer"). Mas achei belíssimo principalmente o final do texto onde ele sinaliza para o principal papel que uma instituição (não só uma igreja) deve ter com relação aos seus partícipes: Não pensar no lugar do outro, criar espaços para o discernimento, não fechar questões. Talvez esse possa ser um dos sentidos da expressão conhecer a verdade que liberta, posta lá no evangelho de João. Aliás, esse evangelho é um substrato que restou do cristianismo gnóstico, muito similar a perspectiva budista, que pregava a descoberta interior do Reino de Deus em nós mesmos.
Grande abraço do ERASMO
Por Sabrina Ferigato
Que coisa mais bonita!!
"Não é vontade de Deus que uns tenham tudo e outros tenham nada.
Não pode ser vontade de Deus. A vontade de Deus é que todos seus filhos e filhas sejam felizes.(...)
Devemos buscar o Menino Jesus não nas nossas imagens bonitas de presépio,
mas nos nossas crianças desnutridas que esta noite foram dormir sem ter o que comer.
Nos vendedores de jornal que dormiram mal."
(Dom Oscar Romero)
Tenho sinceras dificildades em não admitir meu posicionamento religioso, católico, ainda que muitas vezes não manifeste publicamente minhas opiniões. Não matarás é o mandamento. E eu mato todas as vezes que me calo diante da violencia, da exploração, de tudo que anula algum traço da dignidade, do amor e da justiça, de quem quer que seja...quando deixo de alimentar sonhos. Carolina Camilo Correia Enfermeira. Aprimoranda em Saúde Coletiva. Hospital das Clínicas da FMUSP. São Paulo/SP.
Por Erasmo Ruiz
Bela lembrança Camila. Em dias em que a Igreja transpira conservadorismo, é bom lembrar de Dom Oscar Romero (covardemente assassinado em plena missa pela direita em El Salvador), das freiras americanas chacinadas pelos paramilitares salvadorenhos, do Reitor da Universidade Centro Americana, o Padre Ignacio Martim-Baro também massassinado em seu local de trabalho, são mártires no coração do povo. Como nos lembra Gramsci, não existe "O Catolicismo" mas sim vários catolicismos, e, infelizmente, Bento XVI parece representar o pior tipo, principalmente quando se mete a falar de saúde pública.
Abraços do ERASMO
Por Emilia Alves de Sousa
Oi Erasmo,
Essa é uma realidade muito complexa e exige muita reflexão.
Se por um lado é complicada a situação de uma criança, de apenas 9 anos de idade, grávida e do próprio padrasto, por outro, a vida é um direito de todos. Olhando a questão por esse prima, ficamos em dúvida.
Porém, me coloco na pele desses trabalhadores de saúde, que apenas, cumprindo uma determinação da justiça, são excomungados pela Igreja. É lamentável!!. Que sentimentos passam pela mente deles! Não deve estar sendo fácil!!
Parabéns por nos trazer esta reflexão!!!
Um abraço!!!
Emília