O eterno retorno

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O eterno retorno

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Em resposta a "De volta ao crack", redigido pelo médico oncologista Dr. Drauzio Varella. IN: Folha de São Paulo, 09 de fevereiro de 2013. Vide link:

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/drauziovarella/1228216-de-volta-ao-crack.shtml

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Escrito por Fabrício Donizete da Costa, médico-residente em Psiquiatria pela UNICAMP.

Sim, com este título giratório retomo novamente ao tema do crack. E, de maneira repetitiva, retruco mais uma vez frente a uma fala “especialista” na questão, a opinião do médico oncologista Drauzio Varella que, de novo, neste círculo de reencontros, teve seus pensamentos divulgados de maneira privilegiada pelo jornal do qual é colunista, a Folha de São Paulo, em texto publicado hoje intitulado “De volta ao crack”.

Eterno retorno, não só do tema, mas dos argumentos que vem dando corpo ao debate do manejo de usuários de crack pela mídia. Primeiramente, pela maneira com que o tópico “crack” é introduzido. Repete-se a fala epidêmica, em que o crack ganha corpus compatível simbolicamente ao das doenças já consideradas epidêmicas, como se tratasse da ressurreição da peste bubônica, da hanseníase (lepra) ou mesmo da tuberculose, mantendo o alarmismo com que o tema é levantado. Soma-se a isso, a capacidade de se levar a discussão aos extremos, como se fosse impossível imaginar usuários ocasionais e não-problemáticos da cocaína e de seus derivados, como o crack. O “cracudo” é sempre o “lixo humano” que mal tem forças para existir e que nossa “benevolência” deve direcioná-lo a internação compulsória!

No mar das repetições, não posso negar que surgem algumas novidades. Dentre elas uma certa amenização do tom “revoltado” contido na entrevista, que alcunhava a discussão das internações compulsórias como ideologicamente “polemizada e, portanto, supostamente “ridícula” (o que um segundo texto, que retoma o mote da entrevista, contradiz de maneira contumaz tal fato, pois se há repetição, houve repercussão, ora o tema não é tão “simples” a ponto de ser considerado encerrado ou abarcado em sua complexidade). As desculpas formais aos trabalhadores dos consultórios na rua dentre os diversos profissionais que também lidam com esta população (pois, parece que, num passe de mágica o campo da “saúde mental” e das estratégias de “redução de danos” foram totalmente esquecidas, consideradas ineficientes e dispendiosas, perante a eficiência do dispositivo “internação compulsória”). É inegável a consideração que se carece de um manejo fino e sutil para a construção conjunta do cuidado, sobretudo de quem não tem acesso inclusive às suas demandas de atenção básica, um dos focos dos consultórios na rua.

De novo, entre os já-ditos, vejo isso. Apenas. Estrelas esparsas num céu enegrecido. E enquanto brilharem poucas e parcas estrelas, bem altas, neste breu, sou compelido à revisitar as repetições mais incongruentes.

Começo pelas fortes reprises das inúmeras mortes direta e exclusivamente consideradas como “filhas do crack”. Temo em dizer que o crack não teria forças para conduzir tal punhal ou foice. Acredito que muitas das mortes enumeradas e enunciadas tem relação direta à questões muito mais complexas como a marginalização que levam multidões a habitar o território das ruas, a desassistência social, a inoperância do sistema carcerário e penitenciário, a miserabilidade “invisível” por décadas, a desigualdade de acesso a educação, saúde dentre outras necessidades inalienáveis, mas custosamente garantidas de forma equânime pelo Estado neoliberal brasileiro, cuja política mais contumaz a esta prática vive resistindo e se configura como a política do Sistema Único de Saúde (por mais deficitário e incongruente que pareça ser, como tem se demonstrado agora com a questão das internações compulsórias…).

O crack, inevitavelmente potencializou e potencializa muitos danos expostos pelo médico oncologista, mas a criminalização e a estigmatização de seus usuários, evidencida diuturnamente na mídia, tem contribuído imensamente para potencializar estes danos, ao invés de reduzí-los.

Repete-se também, mas de forma mais branda, a urgência das internações. E, frente a isso, repito novamente: acredito que o tratamento e manejo da dependência de crack deve ser realizada em rede, ou seja, deve contar com serviços ambulatoriais e de internação, sobretudo de caráter breve e em localizados em hospitais gerais, como parte da linha do tratamento individualizado que deve respeitar critérios médicos e a demanda do paciente.

Não fico satisfeito com a fala de que “se ficou internado, sairá mais coradinho…”, pois primeiramente, o veículo imposto (internação compulsória) fragiliza uma série de relações de difícil construção durante o processo de tratamento e intervenção em saúde, sendo raramente considerado um “tratamento acolhedor” (excetuando casos de urgência, em que o paciente é um risco a sua integridade e dos que o cercam, que não é a maioria dos casos dos usuários de crack) e, em segundo lugar, porque o dinheiro que irá ser destinado a essas internações deixa de ser aplicado nas redes de cuidado já instaladas e que carecem e muito de expansão e financiamento públicos (pois, na estratégia em saúde mental, pouco se pensou na dimensão da questão da dependência química, que privilegiou a abertura de CAPS III – para transtornos mentais graves que acometem cerca de 1% da população – em detrimento dos CAPS ad – que em algumas estatísticas mostra a prevalência de uso problemático de substâncias psicoativas, como o álcool, em torno de 12% da população)

Para fechar as minhas considerações, não poderia deixar de retomar mais uma repetição familiar a ambos os pronunciamentos frente ao crack proferidos pelo médico oncologista: o apontamento de verdades sem claros desdobramentos dessas informações.

Como é possível finalizar a discussão “de volta ao crack” apontando uma generalização bastante questionável como o fato de se desacreditar na política de redução de danos de diversos países que destinaram áreas públicas para o consumo de drogas ilícitas afirmando que tais experiências se demonstraram como agregadoras da mortalidade!

Fico até constrangido em apontar experiências como a do Centre Médicale Marmotton e de outras entidades de saúde especializadas em dependência química que veem nas narcossalas uma das ferramentas de manejo da dependência, sobretudo nos casos em que a recaída pode ser acompanhada de acolhimento, segurança e distanciamento dos laços criminais que implicam o retorno pela busca da substância! É inquestionável o deslize em comparar narcossalas às cracolândias… Uma amostra do quanto a intolerância e o tabu frente ao tema da dependência química ainda dão “muito barato”!

Repetições, reprises, retornos… Ecos internos que precisam parar… Tem certas repetições, que se forem aceitas, perdem seu tom impalatável e passam do status de meras repetições e ganham o título de práticas socialmente aceitas…E é isso que temo quando o “dispositivo crack” ganha o tom e o timbre que vem cantando em nossos ouvidos.