Páscoa, Cinema e Liberdade

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Era abril de 1971 ou 1972…não consigo me lembrar ao certo. Com pouco menos de 10 anos já adorava cinema, não propriamente o que uma criança deveria assistir. Achava os desenhos animados muito chatos. A fórmula “desenho musical” não me atraia. Alias o gênero musical sempre me pareceu uma coisa estranha, afinal, a gente não  vê as pessoas cantarolando pelas ruas com tanta facilidade.

Naquele dia eu conheci “Deus”, o roteirista e ator principal de “Os 10 Mandamentos”, reprise imperdível  na semana santa entre outros tantos filmes de perfil religioso.

E conheci também um outro personagem ilustre chamado “Moisés” na pele do ator Charlton Heston.  Na verdade Moisés era o ator principal, mas quem se atreveria a tomar o lugar de “Deus “ ardendo na sarça e ainda escrevendo os seus mandamentos com dedos de fogo?

Charlton Heston

Ali, diante dos meus olhos, assisti ao Egito ser assolado pelas pragas enquanto seu faraó teimoso – ainda mais majestoso interpretado por Yul Brynner – dizia não e não ao Moisés. Confesso que fiquei triste com “Deus” quando veio a morte dos primogênitos, afinal, eu também era um.

Yul Brinner

Pela primeira vez na vida entendi o ritual da Páscoa. Na sua origem, uma celebração da liberdade que trazia à memória o tempo da escravidão. Símbolos que evocam a memória, símbolos que evocavam o agradecimento. Para minha surpresa, a Páscoa não era apenas  a ressurreição de Jesus ou ovos de chocolate.  É possível aprender teologia com filmes.

De repente o mar se abriu diante dos meus olhos. Que força e poder tinha aquele “Deus”. Que dignidade mostrava aquele homem de barbas brancas agitando o cajado e impelindo seu povo a atravessar a fé na forma de um mar fendido.  Para mim era tudo verdade. Ainda não existia uma coisa chamada “efeito especial” . Com certeza uma câmera havia recuado milênios no passado e filmado tudo aquilo.

 

O tempo foi passando e minha fé foi  corroendo lentamente como um navio encalhado que resiste ao reboque e ao afundamento. Hoje, carcomida, a  fé vestiu-se de razão…uma roupa desconfortável por vezes mas que representa o abrigo possível.

Mas parte da criança ainda habita minha alma. Ela acena ao meu coração cheia de esperança.  Avisa que se foi  possível acreditar naquilo tudo, então, construir as utopias não deve ser uma tarefa impossível. Se uma parte de nós acredita que escravos fugindo em busca da liberdade foram capazes de atravessar um mar entreaberto por um só gesto; se parte de nós acredita que um homem transformado em divindade foi capaz de morrer por nós e voltar dos mortos três dias depois; então fica mais fácil lutar contra as injustiças desse mundo

Os preconceitos de cor, gênero, conduta sexual e classe deveriam ser destroçados pelas nossas ações. Basta abrir o Mar Vermelho em nosso peito e fazer uma nova pascoa. Livres marcharemos para um novo mundo, uma nova terra prometida onde o leite e o mel seja a nossa efetiva capacidade de expressar e receber amor, de construir um novo tempo onde celebremos todos os dias o fato de sermos humanos!

Fecho os olhos e novamente volto ao passado. O olhar do menino deslumbrado pela cor e o tamanho da tela ainda brilha. “Deus” ainda fala com Moisés e continua nos exortando a buscar novas formas de liberdade.

FELIZ PÁSCOA