a captura da idéia de tolerância
Formation (difference and repetition) V
Baden Pailthorpe
FILE Machinima
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Reproduzo aqui o artigo de Rita Almeida sobre a captura da tolerância em nome da homogeneização da realidade. Como ela mesma alerta, há que se pensar sobre esse caráter seu paradoxal.
Não se pode tolerar a intolerância
domingo, 14 de abril de 2013
por: Rita de Cássia de A. Almeida
psicanalista
O que podemos concluir, se é que se pode concluir alguma coisa do infeliz debate com Feliciano, é que todos defendem uma sociedade mais tolerante, ao ponto de até mesmo os mais intolerantes se queixarem quando não são tolerados. Por isso, há de se ter um certo cuidado com o discurso da tolerância, afinal, ele é no mínimo paradoxal. Se a tolerância tem como princípio aceitar tudo o que é diferente, isso implicaria também em aceitar comportamentos preconceituosos, opressivos e antissociais. Seguindo esse raciocínio a homossexualidade deve ser tolerada, mas também, a homofobia.
A tolerância, apesar de flertar com a democracia, também pode operar como seu reverso. Quando o discurso da tolerância serve somente para promover um acordo do tipo: “eu aturo você, então, você também precisa me aturar” ou “todos precisamos aturar qualquer coisa”, ele opera apenas para silenciar o conflito, aplacar o mal estar das nossas relações, evitar os embates, mas não pode haver democracia plena sem embates e conflitos.
Nesse sentido, existe uma linha muito tênue separando a tolerância da indiferença. Tolerar, aqui, torna-se sinônimo de alargar os limites sociais e culturais para que mais pessoas possam caber no espaço estabelecido. É quando o princípio da tolerância é usado simplesmente para que aceitemos as diferenças sem dialogar com elas ou sem questionar o porquê das mesmas, e assim, corremos o risco de esquecer que muitas delas foram produzidas pela ignorância, pela violência, pela opressão, pelas injustiças sociais ou por políticas excludentes. Tolerar as diferenças sem interrogá-las, pode apenas naturalizá-las, nos tornando conformados, apáticos, desafetados e anestesiados.
A tolerância regada pela indiferença, nos leva a pensar que devemos aceitar as diversas manifestações religiosas, incluindo aquelas que pregam a demonização de determinados segmentos sociais; que devemos aceitar as diferentes expressões culturais, incluindo aquelas que violentam ou mutilam mulheres; que devemos acolher pessoas de diferentes classes sociais, e também as políticas econômicas perversas que produzem pobreza e miséria; que devemos respeitar as pessoas independente do seu nível de escolaridade, mas também nos conformar com o analfabetismo e a precariedade da educação pública; que devemos incluir os excluídos, e também tolerar as políticas sociais que promovem e aprofundam a exclusão.
É por isso que, na contramão do que se prega ingenuamente por aí, nem tudo deve ser tolerado, ou melhor, nem tudo deve ser tolerado, sem antes, ser alvo de nosso questionamento. Tolerância só não é indiferença quando temperada com uma boa dose de indignação.
Por exemplo, tolerar o mendigo que dorme na calçada e nos aborda no sinal pedindo dinheiro sem nos indignar ou questionar o sistema econômico e as políticas sociais que produzem esse fenômeno é, no mínimo, leviandade. E aí pouco importa se você deu ou não a esmola que ele pediu. Dar ou não dar esmola, dizer sim ou não para o morador de rua é tolerá-lo, é alargar os limites sociais para fazê-lo caber, mas também, aceitar como naturais todas as contradições que ele denuncia. E quantas vezes demos ou damos dinheiro a um morador de rua simplesmente para nos livrar mais rapidamente dele e do mal estar que ele nos causa? E quando escolhemos dar a esmola ainda fazemos isso ao mesmo tempo em que expiamos nossa culpa.
Mas, afinal, que princípio ético deve nortear nossa tolerância ou intolerância?
O desafio é sempre político, ou seja, alcançar o que chamamos de bem comum, sendo que, tudo que fortalece os laços sociais caminha para a prática do bem comum. Então fica fácil distinguir: tudo o que é resultado ou resulta em fortalecimento dos laços sociais precisa ser tolerado, e tudo o que é resultado ou resulta no enfraquecimento dos laços sociais não pode ser tolerado.
Sendo assim, qualquer prática religiosa, com os seus mais diversos rituais, simbologias ou crenças, deve se tolerada, desde que não sirva para semear o preconceito e o ódio, ou promover a exploração de outrem. Qualquer orientação sexual deve ser tolerada, com exceção daquelas que fazem uso da violência e do abuso do poder, aquelas que ao invés de agregar, desagregam. Nesse caso, uma prática sexual, digamos, tradicional – entre um homem e uma mulher – não garante uma forma de relação tolerável, afinal, existem relações homossexuais que agregam, assim como existem relações heterossexuais que violentam e desagregam. Ninguém pode ser discriminado pela sua classe social, pelo seu nível intelectual, pela cor da sua pele, pela sua condição física ou mental, obviamente que, tolerar essas diferenças aproxima as pessoas, faz laço. Mas isso não quer dizer que devamos tolerar práticas políticas, sociais, culturais ou econômicas que sustentem ou aprofundem tais diferenças, especialmente quando elas produzem injustiça e exclusão. Usamos drogas (lícitas ou ilícitas) para curar, para aliviar nossas dores, em alguns rituais sociais ou religiosos, para lazer e diversão, nesses casos, seu uso pode ser tolerado porque tem como objetivo produzir, ampliar e fortalecer laços. Mas não podemos tolerar quando as drogas são usadas como veículo ou como resultante da exclusão, do isolamento e de rupturas sociais e afetivas. Assim como não podemos tolerar intervenções ou tratamentos para os que adoeceram pela via da droga, por meio de práticas ou políticas que excluam, isolem, ou seja, que fragilizem ainda mais os laços dessas pessoas com o mundo. É possível tolerar toda e qualquer manifestação cultural, mesmo as que nos pareçam demasiado estranhas e exóticas desde que tenham como objetivo produzir afetividade, aceitação, inclusão, aproximação. Por outro lado, qualquer prática cultural que se sustente na violência, na opressão ou na exclusão de outrem não pode ser tolerada. Enfim, nenhum ato violento ou criminoso deve ser tolerado. Entretanto, também não podemos tolerar que um cidadão que, porventura, cometa um crime seja alvo de vingança pura e simples, ou receba sua punição ou pena em instituições ou instâncias que empobreçam ainda mais os laços que, por ocasião do crime, já foram rompidos ou fragilizados. Especialmente quando o crime cometido, sabemos ser resultante do que chamamos de marginalidade, ou seja, da ruptura de laços anteriores, das injustiças sociais e do abandono do poder público.
Por fim, não almejo uma sociedade mais tolerante, se a tolerância for um discurso que sirva apenas para silenciar os sintomas resultantes das injustiças, do individualismo, do consumismo desenfreado, de políticas econômicas excludentes e da corrupção. E também me recuso a ser tolerante se, para isso, tiver que aturar a intolerância alheia; seja de pessoas, instituições, grupos religiosos ou do poder público. Resumindo, minha tolerância tem limites muito claros, ela só vai até onde a intolerância do outro começa.
Por Maria Luiza Carrilho Sardenberg
Me fez lembrar um belo livro sobre o assunto, "A tolerância e o intespentivo", organizado por Edson Passetti e Salete Oliveira ( Ateliê Editorial, 2005 ).
Vejamos a interessante introdução de Edson Passettti:
"É a permanência do intolerável, às vezes quase surda, que surpreende a acomodada história dos progressos da tolerância. Nestas décadas que incluem o fechamento do século XX e o início do XXI, em que se fala e recomenda tolerância a cada dia – nas rodas, nos bares, nos jornais, nas televisões, e se confirma a verdade tolerante como o equilíbrio de cada indivíduo, de cada cidadão e de cada democrata ( e dos pequenos, médios e grandes tiranos que se fazem passar por democratas juramentados, característica de muitíssimos ubuescos burocratas e políticos brasileiros )-, o programa mais saudado da atualidade chama-se tolerância zero. Nascido sob o conservadorismo estadunidense e incorporado aos poucos pela esquerda social-democrata, difunde a idéia de que é preciso penalizar, mais e com mais rigor, as mínimas infrações. Estranhamente, numa eepoca de disseminação de direitos, de culto à tolerância e de crenca na eternidade da democracia com segurança, o que mais se deseja é a tolerância zero. Um microfascismo não foi abatido!" ( p. 13 ).