a redução de danos como clínica ampliada

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https://coletivodar.org/2013/05/a-reducao-de-danos-como-pratica-potencialmente-libertadora-entrevista-exclusiva-com-denis-petuco-e-flavia-fernando/

 

ENTREVISTA COM DÊNIS PETUCO E FLÁVIA FERNANDO:

“Você tem talvez dois paradigmas na área da saúde: o da abstinência e o da redução de danos. Em vários momentos eles me parecem inconciliáveis.”

COLETIVO DAR – Flávia Fernando e Dênis Petuco são um casal porreta. Ela, psiquiatra, e ele, sociólogo, são duas das principais referências teóricas e práticas do campo da Redução de Danos no Brasil. Campo em disputa, de práticas que podem ser, nas palavras de Dênis, capturadas, mas também servir, nas palavras de Flávia, “como uma companheira fecunda, potente e inspiradora” para se pensar não só o cuidado e a escuta dos usuários de drogas mas também a integração com as diversas outras lutas que compõem a busca por uma sociedade mais livre e digna. O Coletivo DAR os encontrou em sua atual morada, na cidade do Rio de Janeiro, e o que segue é resultado desse papo que certamente também nos foi muito fecundo, potente e inspirador.

DAR – Como vocês chegaram à Redução de Danos (RD)?

Dênis – No meu caso tenho uma caminhada como usuário que passou por diferentes momentos de seu uso, passando por diferentes tratamentos. Mas a minha aproximação com a Redução de Danos começa em 1999 quando fiz um tratamento em Comunidade Terapêutica, e durante seus nove meses tomei a decisão de depois que saísse iria me dedicar a esse tipo de trabalho. E aí eu fui trabalhar num primeiro momento em Comunidades Terapêuticas (CT), porque o que eu sabia que existia eram as clínicas, que eu já tinha experimentado, grupos tipo AA e também as CT’s. Tudo que eu sabia era em função das minhas experiências. E aí comecei a trabalhar e sentia um certo desconforto no trabalho, porque por mais que eu tivesse feito o tratamento em CT tinham algumas coisas que me incomodavam, que eu intuía que não estavam certas. Tipo o desrespeito à liberdade religiosa dos outros, a obrigatoriedade de você se submeter aos cultos da religião que dominava aquele ambiente, a ausência de respeito ao sigilo de correspondência, o fato de todo mundo se submeter a um mesmo modelão, uma série de coisas. Mas eu não sabia que existiam outras coisas. Trabalhei em CT ate por volta de 2002, e fui trabalhar com educação popular.
Durante esse trabalho eu tive meu primeiro contato com o pessoal da Redução de Danos, porque o lugar onde eu fazia educação popular era campo do pessoal da RD de Porto Alegre. Aí um dia fomos a campo juntos, vi o jeito deles trabalharem e vi que eu queria fazer aquilo também. E aos pouquinhos comecei a perceber que aquele jeito de cuidar das pessoas tinha proximidade muito grande com a ética da educação popular, com a ética dos direitos humanos.
Flávia – Tem a ver com a minha escolha pela psiquiatria primeiro, escolhi fazer psiquiatria pra criticar a psiquiatria. A luta antimanicomial e a Reforma me inspiraram a fazer psiquiatria, e aí quando comecei a estudar sempre a clínica com pessoas que usam droga era a que mais inspirava, mas ver a como a forma hegemônica lidava com a questão me incomodava muito. Eram formas de fazer clínica extremamente restritivas, abolidoras daquilo que a gente possa chamar de sujeito, ou de alguma produção de subjetividade autônoma e livre. Mas eu sabia que queria trabalhar com aquelas pessoas. Então muito mais na intuição e no tato do que com algum conhecimento propriamente fui me conhecendo como psiquiatra, trabalhando com pessoas que usavam drogas mas sabendo que gostaria de fazer de um jeito muito diferente do que eu via meus colegas fazendo.
Aí acabei indo de Salvador pra Porto Alegre, e nesse meio tempo fui pra Foz do Iguaçu, e em 28 dias lá eu ajudei a começar um trabalho num CAPS AD e algumas pessoas me apresentaram a RD. Eu nunca tinha lido, não tinha nenhuma propriedade, e aquilo foi me soando como algo que tinha muito a ver com o que eu intuitivamente fazia com as pessoas, ou seja, uma clínica da negociação e não da prescrição, uma clínica de escuta radical, de pensar o como e não só o pra que e o porquê, de pensar o cuidado de si independentemente das suas escolhas e uma clínica que considere o desejo. Então naquele momento meus percursos com a psicanálise e com a reforma psiquiátrica se enlaçaram com aquilo que eu acredito que seja a possibilidade de se construir enquanto subjetividade no mundo, que é pela via da liberdade, do desejo, da cidadania. Nesse momento as coisas fizeram muito sentido,e fui trazendo isso pra minha clínica,e  alguns anos depois conheci Dênis e outras pessoas que trabalhavam com isso, fui encontrando pares coletivos que eu pudesse dialogar.

 

DAR- Como você vê essa relação entre Redução de Danos e sociologia, Dênis?

Dênis – a RD traz uma complexificação do olhar, multidisciplinar, enfim. E nesse sentido ela rompe com uma perspectiva medicalizante do olhar sobre a questão do uso de drogas, rompendo também com perspectivas “psicologizantes” e “sociologizantes”, ela vai instigando um olhar que rompe com as barreiras das disciplinas. Eu não consigo ver a RD interferindo no modo como eu faço sociologia, mas eu consigo ver a sociologia interferindo na RD. E nesse sentido não está sozinha no mundo: a gente pode pensar na noção de clínica ampliada, e talvez a gente não precisasse nem falar de RD, podíamos falar de uma clinica ampliada aos usuários de drogas.
Já posterior ao meu trabalho com Redução de Danos, no Fórum Social Mundial de 2005 em Porto Alegre foi a primeira vez que tive contato com o conceito de educação popular na saúde. E o simples contato com o conceito, antes mesmo de ler o que ele significava, só saber que existia isso já produziu um efeito brutal de olhar pra minha própria prática e perceber como a RD do modo que a gente fazia naquela época tinha uma profunda ligação com as ideias do Paulo Freire. E quando você vai olhar pra história da RD no Brasil você não tem isso de um modo consciente, recentemente que eu ouvi falar de um coletivo de Redução de Danos chamado Paulo Freire, mas naquele momento perceber que a RD que a gente fazia era sim uma prática de educação popular em saúde, ainda que a gente não percebesse isso, não significa dizer que isso estabilizou ou acalmou as coisas, mas foi o contrário disso: o conceito abria uma nova vereda de pensar a prática cotidiana, de refazê-la, foi inspirador.
Acho que a sociologia que acaba fecundando e não o contrário, eu me sinto muito mais alguém que estudou sociologia e faz outras coisas do que um sociólogo.

Flávia – Fico pensando na Redução de Danos como algo que força os limites da clínica…

 

DAR – E tem essa relação forte da prática clínica com a medicalização. De que modo você opera a Redução de Danos como prática que faz frente a esse histórico mais duro da sua profissão, Flávia?

Flávia – A minha escolha já foi do lugar da marginalidade, já foi via psiquiatras marginais. Então eu precisava e preciso de intercessores. O encontro com a RD tem a ver com um encontro com um intercessor que força e abre caminhos desviantes numa clínica que já era desviante. Eu me tornei então mais desviante do que já era, com mais ferramentas pra fortalecer, pra dar aquilo que a gente chama dum plano de consistência pra minha marginalidade enquanto psiquiatra. Tem um pouco a ver com uma clínica dialógica, por exemplo, trabalhando em CAPS ou consultório ou hospital, a experiência que passa não por dizer o que o outro deve fazer mas escutá-lo radicalmente e construir com ele uma possibilidade de caminho e cuidado, para além das escolhas dele, que incluem inclusive a de usar droga ou não. Isso que é dessa ordem, que tem a ver com pensar o cuidado do “como”, ou seja, se você usa crack eu pergunto “mas como você usa?”, nisso tudo a RD me ajudou a pensar muito. A partir dessa pergunta do “como” eu uso você pode pensar no lugar do seu corpo, no lugar do cuidado, acho que é um pouco por aí.

DAR – A Redução de Danos seria uma prática libertadora nesse sentido?

Flávia – A Redução de Danos frequentemente pode ser uma prática libertadora. Ela nasce como prática de empoderamento dos usuários de drogas, e intercede por construções de caminhos de liberdade. Nesse sentido a RD faz um pouco a costura entre algumas grandes lutas que a gente têm, lutas da saúde, da construção do SUS, antimanicomial, reforma psiquiátrica, a RD é uma parceira intercessora de movimentos outros, é uma companheira fecunda, potente e inspiradora.

Dênis – Eu sempre gosto de pensar em romper com os essencialismos. A RD tem sido muitas vezes colocada como algo intrinsecamente progressista, intrinsecamente próxima de um campo mais à esquerda, seria “a esquerda das drogas na saúde”. Acho que pode, mas a gente já viu experiências de RD capturadas, eu já vi com meus próprios olhos. Já vi programa de RD ser transformado na equipe que vai pra rua convencer gente a se internar na CT. Já vi RD ser reduzida a uma dimensão “preventivista”, onde sua única tarefa era levar seringa.
Mas por outro lado o Bordieu dizia que sociologia é o que os sociólogos fazem, ou seja, RD é aquilo que os redutores de danos estão fazendo. Então quando eu ia nos encontros nacionais de redutores, quando comecei a trabalhar com isso, eu ficava sempre muito interessado em ver de que modo isso era posicionado pelos próprios agentes. E era muito bonito ver os redutores dizendo que o que diferenciava alguém ser redutor de danos não era entregar seringa ou não, o pessoal dizia “olha, eu sou redutor de danos, você é um mero entregador de seringas – ou você fica no gabinete pesquisando”. Então tinha muito dessa coisa, ser redutor de danos era ir onde as pessoas estão, no território, nos seus horários. Tem essa disputa, o Tadeu de Paula vai dizer que a RD é polissêmica, adota diferentes sentidos. Ela pode ser capturada, não podemos ficar achando que fez RD é do nosso time. Dizer que você faz Redução de Danos é pouco, eu quero que você me diga o que você entende por Redução de Danos, pode traduzir melhor isso?
Aqui no Brasil a RD ta muito ligada à prevenção da AIDS, da adesão ao tratamento, pouco se fala que um dos grandes trabalhos da RD era contribuir pra adesão ao tratamento, era uma tarefa forte. E aí tem essa passagem, o crack surgindo, as seringas desaparecendo, e o pessoal perguntando: e agora, a RD de danos vai acabar ou isso que a gente inventou ao longo desses anos pode ser aproveitado pra todos os trabalhos na área de álcool e drogas? A resposta vitoriosa foi a segunda, percebeu-se que esse jeito de trabalhar tinha constituído uma ética do cuidado e é ela que vai chegar na saúde mental. Então um CAPS que opera na lógica da RD não é um que distribui seringa, mas é um que trabalha com acolhimento incondicional, que a porta fica não apenas aberta mas escancarada, é um pouco isso. Mas existe a RD “preventivista”, higienista.

 

DAR – Vocês veem algum campo mais fértil para a produção de Redução de Danos?

Dênis – Eu acho que quando a gente pensa na Redução de Danos como ética do cuidado tem espaços onde ela é capaz de produzir transformações, por exemplo no trabalho cotidiano num CAPS pode ter efeitos muito potentes, no sentido de diminuir a burocracia por exemplo, quando refletida para além das meras práticas. Durante muito tempo a RD foi reduzida no Brasil a um cardápio de práticas, a gente ta discutindo aqui como esse cardápio pode ser traduzido numa ética, porque assim a gente extrapola isso pra todo e qualquer lugar, com a RD ganhando potência de intervenção política. Essa RD não-capturável se entende como ética do cuidado, a do cardapiozinho de estratégia é muito fácil de ser capturada. Mas essa pode produzir com mais ou menos potência em lugares diferenciados, pro exemplo, me parece que num CAPS ela tem potência, mas tem outros lugares que ela pode ser ou expulsa ou capturada, to pensando, por exemplo, num hospício, numa comunidade  terapêutica, não consigo ver. Não tem espaço, a não ser que esse manicômio esteja em desconstrução. Você tem talvez dois paradigmas na área da saúde: o da abstinência e o da redução de danos. E em vários momentos eles me parecem inconciliáveis.

Flávia – Enquanto paradigmas, sim. Me parece que tem um lugar hoje que pede silenciosamente, dramaticamente, pra ser fecundado pela RD, que são os CAPS infantis. Me preocupa muito que os CAPS infantis e os serviços que trabalham com infância e juventude sejam muitas vezes, ao trabalhar com a meninada que usa droga,  um lugar de pavor, de emudecimento, de ignorância e de rejeição reativa diante dessas práticas difíceis de lidar. O campo que hoje poderia ser mais fecundado pela RD, com toda a delicadeza de pensar o lugar do desejo para uma criança que é considerada alguém que nem é sujeito, que é um cidadão de segunda classe no imaginário de boa parte das pessoas, penso que sim a RD pode ser um intercessor potente usado com sabedoria.

Dênis – Quando a gente pensa em política, em militância e transformação, a gente sempre tem aquela ideia tradicional de política, de movimento, com cartazes na rua, palavras de ordem, mobilização de massa, partidos, etc. De repente a RD se apresenta como uma outra possibilidade de fazer e pensar política no cotidiano, ela pode fecundar o entendimento de que a política se faz não só com discurso tradicional mas no trabalho cotidiano de cada um de nós. E aí a gente começa a pensar numa outra forma da RD se expressar como discurso político contra-hegemônico. Você tem de repente um serviço careta, onde a maioria dos trabalhadores tem uma visão retrógrada, mas você tem dois ou três ali dentro que pensam e fazem diferente. E aí a gente vê o encontro das pessoas que pensam assim não num grande ato caminhando pela Av. Paulista mas nas pessoas que estão cotidianamente inseridas em serviços de saúde, educação e assistência e que estão fazendo diferente e se reconhecem. A gente poderia pensar na ideia de conspiradores, eles se encontram, se reconhecem no olhar e eles não necessariamente se apresentam em organizações formais – tem até uma certa clandestinidade.
Essa ideia é traduzida na ideia de rizoma, o fato de que a gente não necessariamente precisa botar todo mundo junto numa mesma frente orgânica, organizada, com massas de pessoas caminhando junto pelas ruas – essas massas podem estar dispersas nos mais diferentes lugares, produzindo ações cotidianas que são discurso político contra-hegemônico, que além de defenderem o novo afirmam a possibilidade do novo em ato e teimosia.
Como vocês veem a relação da Redução de Danos com a Assistência Social, com a Educação? A Redução de Danos pode ser de algum modo transposta para uma relação mais fechada com a Assistência Social, visto que se percebe uma certa dificuldade da Redução de Danos engrenar quando se pensa ela aliada à Saúde?

Dênis – Eu acho que sim, a Redução de Danos pode fecundar outras práticas, outros campos de fazer e de saber para além da saúde que é o território onde ela nasce. No caso brasileiro a Redução de Danos pode não apenas fecundar um campo como o da Assistência Social, mas eu te diria que o campo da Assistência Social brasileiro fecundou a Redução de Danos. Ainda que isto não seja colocado de modo objetivo na discursividade dos agentes que construíram a Redução de Danos ao longo da história brasileira, ainda que isto não apareça, a Redução de Danos foi profundamente influenciada pela Educação Popular, pela Educação Social de Rua, principalmente, e a Educação Social de Rua no Brasil foi profundamente sustentada pelas teorias do Paulo Freire.
E as práticas de Educação Social de Rua que são anteriores à Redução de Danos no Brasil influenciaram o jeito brasileiro de fazer Redução de Danos que é diferente do jeito de fazer em qualquer outro lugar do mundo. Os lugares do mundo que fazem Redução de Danos parecida conosco, como Chile, Argentina e Uruguai, aprenderam com a gente a fazer Redução de Danos na rua, dialogando com as pessoas, indo pra debaixo do viaduto e sentando ao redor da fogueira com os usuários de droga injetável. Então, esse jeito de fazer Redução de Danos no Brasil já foi influenciado profundamente pelas práticas lá da Assistência Social, nos trabalhos com Educação Social de Rua. Quando a gente vai pegar os princípios e as diretrizes da Assistência Social, a Tipificação dos Serviços aparece lá muito claramente que o trabalho, por exemplo, do serviço de atenção especial à população em situação de rua, tem que ser feito através da construção de vínculo, da relação de confiança. Então, lá nos princípios e diretrizes de como estes serviços devem se organizar de algum modo a Redução de Danos já está lá. Então, isso já vem acontecendo…
Eu conheço até pela minha caminhada dentro da Educação Popular que na Assistência Social, a Educação é muito mais pujante que na Saúde. E eu conheço muita gente que trabalha na Assistência e eu sei que na última Conferência de Assistência Social o termo Redução de Danos apareceu o tempo inteiro nos debates. No território de lutas da Assistência Social, a Redução de Danos já está lá por dentro ajudando a construir um discurso de acolhimento, de tolerância, de combate ao preconceito. E na Educação também é possível, a Educação me parece um campo talvez… Não sei… É muito difícil… A gente vê os avanços construídos pelo movimento social na saúde, na assistência social, e quando a gente olha pra educação assim dá um desânimo, às vezes, cara… Como as coisas não andam! Como alguns conceitos que já são óbvios lá na Saúde, na Assistência Social, são absolutamente revolucionários dentro da Educação! Como me parece ser absolutamente impossível diante de um modelo pedagógico construído no Brasil você pensar em algo análogo a um Projeto Terapêutico Singular! Do jeito que a Educação é construída não consigo imaginar como um professor faria um Projeto Terapêutico Singular sem derrubar a escola e fazer uma nova! Deve ter jeito, talvez tenha jeito, eu é que não estou conseguindo enxergar talvez, enfim. O modo como os parâmetros curriculares engessam até os professores mais rebeldes assim… E é um campo muito difícil, mas mesmo lá a Redução de Danos pode contribuir com certeza, não há a mínima dúvida. Por exemplo, uma prática extremamente comum no ambiente escolar com relação às drogas é expulsar a pessoa que é pega usando droga dentro da escola. Isso é uma prática absolutamente comum. Uma escola que resiste a isso e não age desse modo é uma escola que de algum modo já está operando Redução de Danos, ela está tolerando o uso de drogas e é uma escola que, principalmente, não expulsa um garoto que foi pego usando droga no pátio… Porque se esse garoto que está com problemas com drogas, se ele for expulso ele passa a ter dois problemas. Uma escola que não expulsa alguém é uma escola que já está operando a Redução de Danos, por exemplo. Isso acontece. É contra hegemônico, mas acontece.

Flávia –  No sentido de migrar totalmente, saindo de um campo e indo pro outro, talvez seja desnecessário, até porque a Redução de Danos me parece que ela necessariamente se coloca na intersetorialidade, ele convoca a intersetorialidade. Nesse sentido, a Redução de Danos e o discurso da Reforma Psiquiátrica têm afinidades eletivas claras. Então ela convoca porque é impossível pensar o cuidado de um modo complexo, pensando unicamente em duas pessoas quando tem mundos e mundos atravessando essas histórias, as possibilidades de alargar o repertório de existência daquela pessoa ali. Então necessariamente convoca a intersetorialidade.
Mas trazer outros dois pontos disso da Redução de Danos fecundando a intersetorialidade: pensando os abrigos como dispositivos da Assistência Social, pensando o desafio da realidade de abrigo que tem recebido adultos ou crianças e adolescentes recolhidos compulsoriamente ou não, mas enfim, crianças, adolescentes e adultos, pessoas que têm história de uso abusivo, problemático de drogas, então, nesse sentido que a gente sabe que uma das regras de boa parte dos abrigos é não dá pra usar droga, tem um horário de voltar, tem uma série de questões que são importantes também porque alguma possibilidade de disciplina pode ser libertadora, não disciplina no sentido do campo disciplinar que Foucault bem descreveu, mas disciplina mais próxima do zen, das práticas de cuidado de si, aquilo que Renato Russo dizia “disciplina é liberdade.” Então, uma outra forma de conceber a disciplina, que é uma palavra muito maldita, que eu acho até que não devia ter usado, mas é nesse sentido totalmente diferente que eu tou dizendo. Então, os abrigos talvez precisassem criar uma zona de interface maior com a Redução de Danos porque eu acho que a Educação Social  de Rua é uma face da Assistência Social e o trabalho que é feito intra-abrigo, dentro dos abrigos é outra coisa. Claro que certamente tem potência, mas me parece… E o lugar das escolas sem dúvidas. Sou psiquiatra infantil e já percebi várias crianças e adolescentes encaminhados com pedidos de prescrição de drogas, no caso, drogas da farmacopeia médica, ai vem ritalina e outras, já com pedido de que fosse prescrito por mim, isso já com diagnóstico feito pelo professor. Então, me parece que a Redução de Danos talvez seja uma intercessora no sentido de politizar o debate, ir para além do indivíduo e desnaturalizar os comportamentos e o seu estar no mundo dessas pessoas. Então, a RD pode ser intercessor, mas não precisa sair de uma coisa pra ir pra uma outra, necessariamente. Eu acho que RD faz algo de um gingado, a possibilidade de trazer uma dança para nossas práticas.

DAR – Como vocês veem o processo de efetivação da Redução de Danos no Brasil?

Dênis: O Sérgio Vidal fala disso: “O Brasil tem uma peculiaridade em ser meio vanguarda na construção de políticas de proibiçao sobre drogas.” A nossa primeira legislação, que é daqui da cidade do Rio é de 1831, é um édito municipal do Código de Condutas do município do Rio de Janeiro. Código de condutas é aquele que fica falando para não estacionar em cima da calçada, essas coisas, e falava e proibia maconha, enfim. E aí isso vai acontecendo ao longo da história. Depois lá na década de 1920 começa a aparecer novas legislações, 1930 tem a lei do governo Vargas, 1976 lei do governo militar, em nenhum desses momentos a gente tem um campo de debates. A gente tinha vozes absolutamente isoladas, e que começaram a aparecer há muito pouco tempo na historia brasileira, então a RD foi importante por ter aparecido como um catalisador dessas vozes, não é a toa que alguns grupos organizadores da Marcha da Maconha no Brasil num primeiro momento se apresentaram como grupos de Redução de Danos. A RD se oferece mesmo como conceito catalisador dos discursos progressistas nesse campo das drogas, que começaram a emergir há muito pouco tempo.
Me parece que agora isso diminuiu um pouco. A gente já não vê tanto o pessoal do direito falar de RD, eles vão falar dos seus conceitos, de abolicionismo penal, etc. A galera dos direitos humanos vai falar dos direitos dos usuários… Então parece que começa a diminuir, é como se esses outros campos começassem a produzir seus próprios conceitos, não precisassem pegar a RD contrabandeada da saúde, acho isso é ótimo.
To trazendo isso para enaltecer a emergência de um campo das drogas no Brasil. Se hoje nos olhamos pro PL do Osmar Terra, pra internação compulsória e denunciamos isso publicamente como um retrocesso, é muito bom que a gente possa fazer isso, que hoje possam emergir vozes dizendo isso, isso só é possível porque hoje temos um campo das drogas no Brasil, coisa que até 20 e poucos anos atrás a gente não tinha. Quando a lei de 1976 foi feita que eu saiba não se levanta nenhuma voz pra dizer “isso é uma afronta aos direitos dos usuários”, não havia nenhuma polêmica. Hoje em dia qualquer programa de rádio ou de TV, por mais conservador que seja, na hora de debater drogas vai chamar diferentes posições, isso não havia. Agora obviamente isso não diminui o fato de que esses possíveis retrocessos, se vierem a ocorrer, serão retrocessos sim, mas ao mesmo tempo acho importante a gente não perder essa dimensão de que a gente constituiu algo, um campo no Brasil, e que nenhum reacionário vai levantar sua voz sem que tenha um progressista pra denunciar. Há 20 anos atrás as pessoas poderiam falar em pena de morte pra usuário e o máximo que aconteceria seria alguém contrário à pena de morte reagir, não alguém do campo das drogas.

Flávia – Talvez a gente pudesse dizer que de algum modo a RD emprestou linhas de consistência na construção de um campo político-reflexivo de drogas especialmente no Brasil. Meio uma agulha, uma linha, que ajudou essa costura desse campo. Desde o nascedouro a RD nasce num campo de lutas, não à toa ela segue fortalecendo essas lutas. No fim dos anos 1980, em Santos, com pessoas da luta da saúde, havia um bando conspirador forte e foi possível uma intervenção historicamente muito importante, na Casa de Saúde Anchieta, mas ao mesmo tempo não foi possível levar adiante um programa de RD. É algo extremamente sintomático que seja possível abrir um hospício como aquele, já que ele era fechado pra cidade, mas quando eles começam as táticas de RD eles são processados.

Dênis – E as ações nem eram de troca de seringa, elas se reduziam a ensinar as pessoas a limpar suas seringas, só isso. E mesmo isso foi proibido, gerando provavelmente a morte de milhares de usuários de drogas num momento em que pegar o vírus da AIDS era praticamente um atestado de óbito para populações vulneráveis, olha o tamanho da maldição que esse tema das drogas traz!

Flávia – Nesse sentido a gente pode arriscar dizer que a questão com as drogas é mais tabu que a questão com a dita loucura.

DAR – E em relação à legalização das drogas, qual a posição de vocês? Como a RD se articula a essa bandeira de luta?

Dênis – Vejo que temos afinidades eletivas. Quando a gente olha pro campo político de debates da sociedade civil pensando novas políticas de drogas a gente vê claramente grupos como a Marcha da Maconha defendendo legalização, descriminalização, despenalização, e do outro lado aqueles que são conservadores, querem que fique simplesmente tudo como está. A política de drogas do Brasil pra eles esta perfeita. Nós da RD temos claras afinidades eletivas com o campo da Marcha da Maconha, eu diria por duas razões: uma pelas próprias propostas que esses grupos defendem, no sentido de acabar com a criminalização do usuário de drogas, porque a gente tem uma profunda clareza, e não é de hoje, de que criminalizar uma determinada população produz impacto na saúde daquela população, dentro da saúde isso é ponto pacífico; e um segundo ponto é a própria questão da voz do usuário, que sempre foi importante pros redutores de danos aqui no Brasil, a defesa de que os usuários, com sua própria voz, possam se organizar e participar da definição de políticas.

Flávia – Eu poderia aqui lembrar de incontáveis jovens que ajudei a cuidar e ouvir, e que foram mortos de morte matada, de tiro não de overdose, e que a criminalização legitima e reifica essa realidade a cada dia. A gente ta falando de vidas, e aí eu penso na expectativa de vida dos jovens negros e escravos, que era em torno de 25 anos. A primeira vez que se criminalizou o uso de drogas no Brasil, nos idos de 1830, foi num momento que a população negra do Rio de Janeiro era a maior do mundo e o uso de maconha era associado à vagabundagem e negritude, então a gente ta falando de extermínios ao longo da História produzidos pela via da criminalização da práticas e culturas de alguns povos. Em nosso caso recai especialmente sobre os jovens pobres de periferia, especialmente negros. Como médica, psiquiatra e trabalhadora do SUS penso que a criminalização é uma construção social de produção de mortes em série, então por isso que sim digo com muita segurança e profunda aceitação que a gente precisa rever nossas políticas de drogas se a gente não quiser ver morta boa parte de uma geração de jovens a quem foram negados seus direitos e cujas mortes são legitimadas todos os dias.

 

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