Pipas pela janela de um hospital
Essa semana uma matéria publicada na Folha me emocionou profundamente, com destaque dado à narrativa de um usuário internado por 43 anos no HC da USP. Me emocionei não apenas pelo contexto de sofrimento ao qual o usuário foi submetido toda uma vida, mas especialmente me emociona sua capacidade de resiliência, de criação e de produção de novos mundos possíveis no interior de um ambiente hospitalar, assim como já o fez em outro contexto usuários como Arthur Bispo do Rosário, que no interior de um manicômio criou um surpreendente acervo artístico mundialmente reconhecido.
Na narrativa desse usuário que copio a baixo, conseguimos identificar também a emocionante e dedicada capacidade de cuidado de uma equipe interdisciplinar humanizada e a diferença que determinados modos de intervenção podem operar na vida de sujeitos e nos processos de trabalho em uma instituição.
Dada toda esterilidade, institucionalidade e disciplina concernente à uma vida vivida no interior de um hospital, podemos identificar linhas de fuga, a presença de outros setores, de outros saberes e de outros territórios existenciais que puderam invadir e contagiar um hospital, para muito além do leito de Paulo Henrique. Contágio que transforma um médico em pai, um técnico de informática em clínico, um colega de leito em um empinador de pipas, um usuário com paralisia infantil (ou um pivete em cadeiras de rodas) em um criador de animações digitais, em um roteirista de histórias. Histórias que ultrapassam as paredes do ambiente hospitalar e criam uma rede de novas histórias de pessoas com vivências comuns àquela.
Num cenário de tristeza de uma vida institucionalizada e tomada (mas não capturada) por uma doença, vemos a potência humana em perseverar na existência, em resistir e criar…
Vemos uma instituição se abrir em uma cena, em dados discursos, em singulares intervenções, o que me faz lembrar uma frase de Basaglia sobre o que torna uma instituição aberta ou fechada…
“Um dia, caminhando num hospital psiquiátrico, perguntei ao meu professor: ‘O que quer dizer instituição?’
Ele não sabia dar uma resposta… […] e olhando-me respondeu: – 'A instituição é… olhando em volta, disse: “essa”, indicando-me com as mãos'. […] E assim, eu tive a iluminação com a qual compreendi que a instituição, naquele momento, éramos nós dois, lá, naquele lugar que era o hospital e, portanto, eu comecei a entender que todos os discursos que nós fazíamos, naquele momento, eram discursos que abriam ou fechavam essa instituição, que éramos nós dois” (BASAGLIA, 1983, p. 42).
Convido-os a se deixarem afetar pela narrativa de Paulo, que ao abrir novas possibilidades para sua vida, abre também uma instituição, com o apoio e intervenção de toda equipe de uma ala hospitalar do HC/USP:
PIPAS PELA JANELA
"Minha mãe morreu dois dias depois que eu nasci. Com um ano e meio, tive paralisia infantil. Vim para o Hospital das Clínicas sem movimento nas pernas e, com o tempo, a paralisia atingiu também meu sistema respiratório.
Desde então, dependo do aparelho de respiração artificial para continuar vivo.
Aqui no hospital, aprendi a ler e a escrever. Conclui o ensino médio e fiz vários outros cursos de informática e na área de softwares.
Lembro-me de quando era pivete, podia andar de cadeira de rodas pelo hospital e visitar meus amigos em outros quartos. Líamos historinhas infantis uns para os outros.
Minha capacidade de respiração foi piorando e eu já não podia mais sair da cama. Eu e mais seis amigos, todos com paralisia infantil, fomos transferidos para um quarto [só ele e Eliana Zagui sobreviveram]. Era uma gangue.
Eu e a Tânia éramos os líderes e discutíamos muito. O principal motivo era a televisão. Havia dois aparelhos e a gente ficava competindo pelo volume, pelos programas. Os meninos queriam futebol, as meninas, novela.
Apesar de estarmos presos às camas, a gente inventava brincadeiras que estimulavam a imaginação.
Eu, o Pedro e o Anderson tínhamos movimentação nos braços [as meninas não tinham] e fazíamos pipas para brincar e para vender. O Anderson conseguia soltar da janela do quarto.
Era engraçado porque não ventava o suficiente. Quando a pipa estava quase subindo, caía. Era muita pipa perdida. Enganchavam nas árvores, ou eram pegas pelos meninos que já ficavam perto do hospital à espera delas. Sempre machucava a mão afiando o bambu com canivete.
Aqui no hospital tive muita oportunidade de fazer coisas que qualquer outra criança podia fazer lá fora, como armar arapucas para pegar passarinho no fundo do terraço. A diferença é aqui a gente só pegava pomba.
Um dia encontrei um gafanhoto e o amarrei com barbante. Fazia de conta que eu era o Pinóquio e ele o grilo falante. Também ganhava "presentes" dos funcionários.
Uma atendente me deu uns tatus-bolas. Outro médico que trabalhava aqui, o doutor Giovani, que eu chamava de pai [Paulo tem pai, mas que raramente o visita], me trouxe duas pererecas, aquelas que dão em rio.
Eu tentava pegar, e elas pulavam. Foi aquela histeria generalizada na UTI.
Em 1992, pensei o que poderia ter para produzir, criar alguma coisa. Foi quando escrevi uma carta para uma empresa pedindo a doação de um computador. Comecei a estudar informática sozinho. Era um modelo MSX, bem limitado. Em 1994, ganhei meu primeiro PC.
No início, era aterrorizador, eu vivia quebrando o computador. A coisa melhorou depois que os hospital deixou os técnicos de informática à disposição para me ajudar. Hoje eu monto computadores. Tenho meu segundo PC montado.
A partir de 2004, lutei, também sozinho, para me profissionalizar na área de 3D. Em 2011, achei que eu precisava de um curso para trabalhar com computação gráfica. Fui atrás do Senac, e o professor veio até o hospital.
Desde então, comecei a alimentar a esperança de um dia me envolver profissionalmente com a sétima arte. Adoro cinema, meu ídolo é Charles Chaplin (1889-1977).
histórias
Foi aí que pensei numa animação com deficientes físicos. Mas não sabia se isso despertaria o interesse das pessoas. Foi então vendo as animações com personagens deficientes feitas por um estúdio britânico de que eu gosto [Aardman Animations, especializado em animações stop-motion], que fez a "Fuga das Galinhas", que pensei estar no caminho certo.
Pensei que as minhas aventuras e dos meus amigos aqui dentro do hospital já dariam um bom roteiro para uma série animada.
Ao colocar as histórias das nossas vidas, minha ideia é que as crianças possam assistir e aprender que o deficiente, numa cadeira de rodas, não é tão diferente assim. As histórias também contam sobre passeios que fiz ao Playcenter, ao circo, por exemplo.
Já roteirizei cinco histórias. Meu objetivo é finalizar a primeira temporada com 13 roteiros. Cada episódio tem 12 minutos. Se o vento continuar soprando, outras temporadas virão. E se as pessoas gostarem, nada impede que um dia vire um longa metragem.
A ideia com o Catarse* é que as pessoas compartilhem ideias sobre o projeto e deem uma força. Uma árvore para crescer precisa ser regada. A árvore em questão não é de uma só pessoa. A ideia foi minha, mas o projeto da animação pertence a todos.
Para apoiar esse projeto, clique em: https://catarse.me/pt/leca
*O Catarse é uma ferramenta colaborativa em rede social para a viabilização financeira de projetos individuais ou coletivos financiados de forma participativa (crowdfundind).
Veja a matéria na íntegra:
Fonte: Folha de São Paulo
Por Emilia Alves de Sousa
Oi Sabrina,
Também muito me emocionou o relato do Paulo. Uma história de busca de superação de limites e de experimentação de outros modos de vida. É um belo exemplo da importância do atendimento em saúde com ações acolhedoras e com clínica ampliada. Um atendimento com abordagem terapêutica que estimule , especialmente o doente crônico a transformar-se, de forma que a sua doença não lhe impeça de viver outras possibilidades de existência.
Está de parabéns a equipe de cuidadores do Hospital das Clínicas da USP pelo belo trabalho de produção de vida e de sujeitos!
Um forte abraço!
Emília