Território da Emoção – crônicas de medicina e saúde

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  Território da Emoção: crônicas de Medicina e Saúde

                         Moacir Scliar

 

"Literatura como tratamento"  

 crônica de maio de 2003

 

Literatura serve para muitas coisas. Serve para informar, serve para divertir – e serve também para curar ou, ao menos, para minorar o sofrimento das pessoas. Duvidam? Pois então fiquem sabendo que desde 1981 existe nos Estados Unidos uma Associação Nacional para a Terapia pela Poesia, cuja finalidade é o uso da literatura para o desenvolvimento pessoal e o tratamento de situações patológicas. A Associação edita o Journal for Poetry Therapy, realiza cursos e confere o título de especialista em biblioterapia. O biblioterapeuta trabalha em hospitais, instituições psiquiátricas e geriátricas, prisões. O método é relativamente simples: ele seleciona um poema, um conto, um trecho de romance que é lido para a pessoa. A resposta emocional desta é então discutida.

E respostas emocionais a textos podem ser muito intensas. Exemplo eloquente é Werther, de Goethe, cujo jovem personagem se suicida. A publicação da obra suscitou uma onda de suicídios por toda a Europa, coisa que até hoje é evocada quando se discute a veiculação de notícias similares pela mídia. O mecanismo básico que aí funciona é o da identificação, algo que começa muito cedo. Bruno Bettelheim mostrou que os contos de fada exercem um papel importante na formação do psiquismo infantil, não apenas fornecendo modelos com os quais a criança pode se identificar, como também provendo uma válvula de escape para as tensões emocionais. Na adolescência, os modelos passam a ser outros. e houve época em que os jovens aprendiam a fazer sexo com a literatura conhecida como pornográfica ( lembrança pessoal: jovens do colégio Júlio de Castilhos devorando as páginas suspeitosamente amareladas de um velho livro cujo título não recordo, mas que falava na "grutinha do prazer"). E, no século XIX, eram os grandes romances – aqueles de Balzac, que ensinavam as pessoas a viver. Esse papel foi assumido pela TV, mas a proliferação das obras de autoajuda mostra que as pessoas continuam acreditando em livros como guias para a saúde e para a cura.

Por último, mas não menos interessante, a literatura é importante como fator de estabilidade emocional para os próprios escritores. A associação entre talento e distúrbio psíquico é antiga. Aristóteles já observava que o gênio com frequencia é melancólico. Shakespeare já dizia  que se associam na imaginação o lunático, o poeta e o amante, o que tem contrapartida no dito popular: "De poeta e de louco, todo mundo tem um pouco". Kay Redfield Jamison, professora de psiquiatria da Universidade John Hopkins, estudou a vida de numerosos poetas e escritores, concluindo que há "uma convincente associação, para não dizer real superposição", entre temperamento artístico e distúrbio emocional ou mental ( doença bipolar, no caso ). Nestas condições, escrever pode ser uma forma de descarregar a angústia e de colocar ( ao menos no papel ) ordem no caos do mundo interno. Porque a palavra é um instrumento terapêutico, é o grande instrumento da psicanálise. E a palavra escrita tem a respeitabilidade, a aura mística que cerca textos fundadores da nossa cultura, como é o caso da bíblia. Kafka dizia que era um absurdo trocar a vida pela escrita. Mas ele também reconhecia que sua própria vida era absurda e, nesse sentido, estava optando por uma alternativa com potencial para redimi-lo.

Não precisamos chegar ao extremo de Kafka. Toda pessoa se beneficiará do ato de ler e de escrever. É terapia, sim, e é terapia prazerosa, acessível a todos. O que, em nosso tempo, não é pouca coisa.

                                                      Moacir Scliar ( escritor e médico )