Sete Pontos Acerca das Internações Involuntárias
Nestas últimas semanas, vem se evidenciando o forte poder de articulação no legislativo de um grupo pluripartidário defensor de uma política sobre drogas conservadora. Este grupo vem consolidando um espaço estratégico, na medida em que tem entrada no executivo e preparam uma importante vitória no campo judiciário. A conjuntura é ruim e o poder de articulação dos movimentos sociais ligados à reforma psiquiátrica vem sendo colocado à prova, especialmente pela velocidade que o momento demanda. Nestes parágrafos procuro contribuir para este debate de uma forma autocrítica. Procuro enfatizar a necessidade atual de pragmatismo nas ações. Possivelmente por isso este texto seja bastante criticado, mas entendo a necessidade de apontarmos algumas fragilidades nossas para que possamos avançar neste momento delicado.
O primeiro ponto – não é estratégico negar a importância da questão do crack- Existe hoje um claro desgaste político em reduzir gravidade da questão do uso das drogas no país.Há consenso de que epidemiológica e socialmente o uso de álcool, que é uma droga legalizada, constitui um problema muitíssimo mais grave do que a decretada epidemia do uso de crack. Entre os militantes da reforma psiquiátrica existe também um consenso de que a associação de uso de drogas e população de rua induz a uma simplificação do fenômeno da condição de rua, criando uma cortina de fumaça para a insuficiência de políticas sociais. Por outro lado, insistir nesta análise como resposta única neste debate, induz uma impressão negativa de descaso a uma condição dramática de alta visibilidade. A crítica à mídia é necessária, mas insuficiente. Da mesma forma, é necessária, mas insuficiente, o ataque a uma política de drogas apoiada na repressão. Esta representa uma resposta a uma demanda conservadora da sociedade brasileira ampla e historicamente instaurada no país, que somada à dramaticidade dada pela mídia à questão do crack, ganha muito mais força do que os movimentos de descriminalização das drogas. As políticas assistenciais devem dialogar e procurar a gestão da política como um todo no interior do aparelho do Estado, caso contrário, este irá desenvolver práticas contraditórias junto à mesma população. Este é um desafio que deve ser levado para o interior dos governos, municipais, estaduais e federal.
Segundo Ponto– A Reforma Psiquiátrica é Capaz de Dar Resposta à Questão do Crack- Esta afirmativa deve estar clara a todos trabalhadores do Sistema Único de Saúde que se identificam com a Reforma Psiquiátrica. O modelo assistencial desenvolvido, com ações pensadas na forma de estratégias e de espaços institucionais de cuidado organizados em rede, é extremamente sofisticado. Propõe ofertas que respeitam a diversidade das demandas de usuários de drogas, desde quadros clinicamente graves até ações de redução de danos em populações vulneráveis. Por outro lado, as alternativas assistenciais pautadas em instituições de longa permanência, especialmente as comunidades terapêuticas, são muito frágeis, sem evidências de eficácia superior a nossas propostas, com baixa capacidade de absorção de grandes demandas. Não se organizam num desenho de rede e apresentam, como única proposta, a oferta de espaços de promoção de abstinência. Não são pensadas no âmbito da assistência à saúde, em sua maioria têm péssima qualidade em todos os sentidos. Têm, também em sua maioria, um caráter religioso que é excludente, além das dificuldades em cumprir com exigências sanitárias mínimas. Sabemos que há no SUS problemas graves de financiamento. Entretanto, o pleito da ampliação de recursos federais deve ser assertivo; porque faltam aos gestores clareza das demandas em saúde dos usuários, especialmente quando organizamos nossos serviços em rede de atenção. Os gestores públicos comprometidos com a Reforma Psiquiátrica devem assumir o discurso da eficácia das ações, e esta não está na promoção da abstinência. Não basta a defesa da redução de danos, apontar a banalidade da nova lei de drogas em andamento no senado ou defender a legalidade das drogas; é necessário criar bons exemplos de atenção, divulga-los, criar um cenário assistencial que crie experiências emblemáticas.
Terceiro Ponto-reducionismo; ato involuntário é diferente de internação involuntária- Participei de diversas mesas sobre o tema em que na discussão sempre surgia uma questão; “toda a mesa é contra toda internação involuntária? E no caso de uma pessoa suicida?”. Esta é uma armadilha retórica à qual estamos expostos. Porque, propositalmente, internações involuntárias e uma política pautada em internações involuntárias são tratadas como um mesmo fenômeno. Práticas involuntárias na área da saúde são corriqueiras,entretanto não constituem uma política, que pratica a involuntariedade como método que fundamenta as práticas num cotidiano institucional. Este último caso é o que acontece num hospital psiquiátrico, em que se pressupõe que a rotina deve ser imposta independente do paciente, na medida em que ele é incapaz de organizar o próprio cotidiano. Neste, a involuntariedade é regra, corriqueira e estruturante. Destitui o protagonismo, o sujeito, tudo. Entretanto, fazemos ações involuntárias nos CAPS- insistimos em tomada de medicamento, em permanência e retorno ao serviço. Existe uma importante diferença em admitir ações involuntárias como parte da clínica e a construção de uma política formulada a partir de um aparato médico-jurídico que garanta a rotina de ações involuntárias. Existe uma dimensão clínica na involuntariedade das ações que é fundamental para abordagem de qualquer prática de saúde, desde o uso de um antibiótico com efeitos colaterais, até a manutenção de uma pessoa num ambiente que ela não deseje. O que diferencia é o fato de que a ação deve ter significado da prática do cuidado daquela pessoa, no processo no qual aquele que é cuidado ganhe protagonismo, no processo como um todo.
Quarto ponto– involuntariedade e prática clínica- Como desdobramento do ponto anterior, cabe a nós uma importante autocrítica. Não se fala com clareza de algumas práticas de cuidado nos CAPS por constituírem uma suposta herança de práticas manicomiais. Estas são particularmente presentes no cuidado a situações de crise; como contenção física, administração involuntária de medicamentos e imposição de práticas institucionais. Na medida em que isto não é discutido às claras estas práticas continuam sendo desenvolvidas com baixa qualificação ou os serviços não se entendem potentes para o cuidado de usuários graves. Trazer esta pauta à tona é tratar de ações involuntárias nos nossos serviços. Ainda que nossos projetos terapêuticos sejam negociados e construídos junto aos nossos usuários, partimos de algumas concepções que fazem parte do sistema sobre o qual nossos serviços são estruturados. Por exemplo, quando possível tentamos diminuir sintomas psicóticos, diminuir a disfuncionalidade do uso de drogas, criar redes de apoio familiar para nossos pacientes. Seguimos um conjunto de conceitos de cuidado que configuram um sistema instituído que defendemos e negociamos. Mas que também induzimos, seduzimos e, sim, muitas vezes impomos. Tratar a internação involuntária como uma parte de um projeto terapêutico, como a administração de uma medicação de depósito é muito diferente de criar um aparato de internações involuntárias.
Quinto ponto- ênfase excessiva na questão jurídica que envolve o tema- A maior parte das discussões, desde que o tema crack entrou na pauta da Reforma Psiquiátrica, inicia-se com uma questão jurídica, especialmente do quanto é legal internar involuntariamente. É fundamental pontuar que o referencial jurídico é insuficiente para contemplar toda a complexidade do tema do cuidado e proteção a usuários de drogas. Limitar a discussão a questão jurídica esvazia propositadamente o debate e desvia a preocupação do desempenho do Estado frente ao tema para a legitimidade da sociedade mais conservadora demandar a construção de um aparato médico-jurídico de internação em massa. Como vem acontecendo em São Paulo, Rio e nos municípios que vem constituindo patronatos ou estruturas semelhantes. Na medida em que o movimento da reforma se aprofunda nesta discussão em termos jurídicos, fica focado nas diferenças instituídas na legislação entre as internações involuntárias e compulsórias. Este movimento nos coloca numa armadilha de não debater as ações involuntárias como prática de cuidado possível num sistema que privilegia a construção da cidadania e protagonismo dos usuários. Num sistema em que manter um usuário involuntariamente num leito de CAPS pode ser uma ação de redução de danos, perfeitamente legítima e que não implica num retrocesso do movimento, mas para uma ampliação e potencialização do mesmo. Neste enfoque, internação compulsória é apenas uma internação involuntária com uma ordem judicial, que devemos enfrentar na medida em que o sistema de saúde e não o judiciário deve ter a gestão projeto terapêutico.
Sexto ponto– redução do conceito de projeto terapêutico a prática institucional- Nenhum procedimento constitui, em si mesmo, um projeto terapêutico. Nem uma internação involuntária, nem uma administração de medicamento. Esta é uma perspectiva ingênua e também esvazia o debate. Um projeto terapêutico envolve uma construção compartilhada que vislumbra a transformação de como o sujeito se insere em sociedade. Entender a internação como um projeto em si implica na redução de uma rede de atenção a um conjunto de práticas institucionalizadas (avaliação por psiquiatra, promotor e ordem judicial) e garantidas juridicamente. A estereotipia destas práticas é fundamentada numa categorização de usuários e a concepção de que o uso de drogas os reduz a uma mesma condição. O primeiro movimento neste sentido é o diagnóstico médico, que está presente ao longo de todo o processo, desde o primeiro movimento de homogeneização dos usuários, até na justificativa jurídica para a criação de um aparato de intervenções compulsórias. O que é negado neste caso é a clínica do sujeito, do contexto, lançando mão da medicina mais conservadora e resistente à reforma.
Sétimo ponto– Proposta Social; Outro consenso que vem se consolidando é a personificação do crack, que ganha vida, na medida em que seus usuários passam a ser vistos como coisas, zumbis, etc. Este movimento de personificação do mal ao redor de uma substância, e a insistência pela construção de uma política pautada em instituições religiosas, é uma expressão de um movimento conservador que tem uma percepção clara do papel da máquina pública. Este é um Estado higienista que limpa as ruas, as praças, tenha para isso uma garantia jurídica e espaços legitimados politicamente para acolher esta população. Neste contexto, a internação compulsória é uma engrenagem do mecanismo que envolve a concepção de periculosidade do usuário, sua inimputabilidade, a legitimidade das comunidades terapêuticas, a força de uma bancada pluripartidária no legislativo brasileiro. A questão é que este fenômeno tem uma clareza do local social do usuário de drogas, que é sua reincorporação mediante conversão moral/religiosa.
Acredito termos clareza do papel do Estado, que sabemos que deve ser acolhedor, não essencialmente repressor e deve compor estratégias de ressocialização de usuários em situação de grande vulnerabilidade e vítimas de estigma. Entretanto, não temos clareza de como operacionalizar esta reabilitação, ao contrário do que acontece com usuários crônicos de hospitais psiquiátricos. Também nos falta incorporar a complexidade que cobramos às respostas para questões de drogas, para além do campo assistencial. Esta é a reflexão na qual devemos nos debruçar. Porque se há clareza no campo da saúde, ainda que nossa rede seja frágil e em construção, é necessário saber como o Estado atua quando a questão das drogas deixa de ser uma questão da saúde. Que é o pressuposto que todos defendemos: A não redução do uso de drogas a um tema médico.
Por Maria Luiza Carrilho Sardenberg
da maior qualidade para o momento delicado, Marcelo!