Direito e Justiça: antônimos ou sinônimos? Um estudo de caso envolvendo o direito à saúde e o tratamento de diabetes

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Há alguns meses, em função de minha participação no Encontro Nacional de Blogueiros e Ativistas em Redes Sociais de Saúde (1), fui convidada pelo Professor Carlos Serra (2) a escrever um artigo para integrar a coleção Cadernos de Ciências Sociais sobre o tema “Direito e Justiça: antônimos ou sinônimos?”. Considerando que esta coleção é produzida em Moçambique, e distribuída lá e em outros países (em breve também no Brasil), pensei inicialmente num texto mais teórico, abrangendo o sistema normativo brasileiro, em que a Constituição Federal é hierarquicamente superior a outras leis, prevendo direitos como ordens a serem efetivadas pelos Poderes Públicos (Executivo, Legislativo e Judiciário). Falaria sobre os casos de saúde, objeto principal de meu trabalho como advogada, apenas en passant. Não sabia ainda qual seria a minha conclusão: se Direito e Justiça são antônimos ou sinônimos.
 
Entretanto, antes de começar a escrever o meu artigo, um de meus processos envolvendo o pedido de insumos de diabetes (bomba de infusão de insulina e seus congêneres) teve um desdobramento bastante inesperado: uma sentença que ignora por completo o direito à saúde previsto no artigo 196 da Constituição Federal, enquanto direito de todo cidadão brasileiro e obrigação do Estado, em função, principalmente, dos bairros onde se localizam o meu escritório e o domicílio da minha cliente. Por considerar que minha cliente dispunha de condições financeiras para custear seu tratamento, o pedido foi rechaçado e minha cliente multada por reivindicar direito a que não faria jus, conforme o entendimento esboçado na sentença, a única improcedente em 5 anos de meu trabalho com pedidos envolvendo o tratamento de diabetes (entre eles, o meu próprio).
 
Essa decisão (que será rebatida através de recurso de apelação, com sustentação oral perante o Tribunal de Justiça de São Paulo sobre diabetes, bomba de infusão de insulina e práticas antidemocráticas da Secretaria do Estado da Saúde de São Paulo) me fez pensar sobre Direito e Justiça, e me chamou a atenção para um fator que havia ignorado em minha idéia inicial sobre o artigo: o elemento humano. O ser humano é elemento indissociável da idéia de Justiça, pois o Direito existe para garantir o bem-estar do ser humano. Ainda, a concretização das previsões legais e constitucionais depende da forma como o Direito é “manipulado” (3) por aqueles que trabalham com as leis e com a Constituição Federal. É a partir desse referencial – o elemento humano – que poderemos definir se Direito e Justiça são antônimos ou sinônimos.
 
Assim, após conversar com o Professor Carlos e a cliente envolvida neste processo judicial, aos quais transmito minha gratidão pela permissão de falar sobre o assunto, o que inicialmente seria uma abordagem teórica sobre o Direito Constitucional Brasileiro, será um estudo de caso relatando a forma como os Poderes Judiciário e Executivo do Estado de São Paulo manejam o direito à saúde.
 
Para  escrever este artigo, relatarei nesta seção do blog o caso completo (4), desde o pedido administrativo dos insumos à Secretaria do Estado da Saúde de São Paulo, conforme informações de minha cliente, até seus ulteriores termos. Essas postagens servirão como notas para o artigo que começa hoje a ser escrito. Alguns apontamentos teóricos serão transcritos ao fim de cada post, como forma de guiar a reflexão sobre o caso em análise.
 
Em tempos de desejo de transparência institucional por que estamos passando no Brasil, como forma de tornar efetivo o Estado Democrático de Direitos, nada melhor do que mostrar como o direito à saúde é tratado por Juízes e administradores da saúde pública. Relatarei aqui o que passam os pacientes que dependem de ordens judiciais para tratar sua saúde adequadamente, e que necessitam de atendimento do Estado para sobreviver. Esclareço que eu sou uma dessas pessoas.
 
 
(1) O I Encontro Nacional de Blogueiros e Ativistas da Saúde realizou-se no dia oito de junho de 2013. Cerca de 280 participantes estiveram presentes no encontro realizado no plenário da Câmara Municipal de São Paulo. O evento foi organizado por Priscila Torres.
 
(2) Carlos Serra é professor do Centro de Estudos Africanos do Departamento de Estudos Históricos e Políticos, da Universidade Eduardo Mondlane, de Maputo/Moçambique; diretor da coleção “Cadernos de Ciências Sociais”; e criador e organizador dos blogs Diário de um sociólogo, Diário de um fotógrafo e Diário de um poeta.
 
(3) O termo “manipular” empregado reflete seu sentido dúbio que, dependendo do elemento humano que opera o Direito, pode assumir a acepção de “utilizar” ou de “forjar”.
 
(4) As informações sobre as partes deste processo judicial serão trocadas em respeito ao direito à privacidade das pessoas envolvidas.
 
 
Reflexões desta postagem (trechos retirados do livro “Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. Da possibilidade à necessidade de respostas corretas em Direito”, de Lenio Luiz Streck):
 
– crise de efetividade da Constituição (pág. 1);
 
– “… passa-se a um direito com potencialidade de transformar a sociedade, como, aliás, consta no texto da Constituição do Brasil, bastando, para tanto, uma simples leitura de alguns dispositivos, em especial, o artigo 3º. O direito, nos quadros do Estado Democrático (e Social) de Direito, é sempre um instrumento de transformação, porque regula a intervenção do Estado na economia, estabelece a obrigação da realização de políticas públicas, além do imenso catálogo de direitos fundametais-sociais” (pág. 2);
 
–  “… o direito, na era do Estado Democrático de Direito, é um plus normativo em relação às fases anteriores, porque agora é transformador da realidade. E é exatamente por isso que aumenta sensivelmente o polo de tensão em direção da grande invenção contramajoritária: a jursidição constitucional, que, no Estado Democrático de Direito, vai se tranformar na garantidora dos direitos fundamentais-sociais e da própria democracia” (págs. 10/11);
 
– “Numa palavra: se o direito é um saber prático, a tarefa de qualquer teoria jurídica é buscar as condições para a) a concretização de direitos – afinal, a Constituição (ainda constitui) – e b) ao mesmo tempo evitar decisionismos, arbitrariedades, e discricionariedades (espécies do mesmo gênero, o positvismo) interpretativas.” (pág. 12);
 
– “… ativismo judicial, que, aliás, tem sido praticado às avessas em terrae brasilis, contribuindo para a inefetividade dos direitos fundamentais-sociais. ” (pág. 16);
 
– “… a discussão acerca do constitucionalismo contemporâneo – e de suas implicações políticas – é uma tarefa que (ainda) se impõe. E essa questão assume especial relevância em um país em que as promessas da modernidade, contempladas nos textos constitucionais, carecem de uma maior efetividade.” (pág. 21)
 
 
 
 
 

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