Como foi a primeira passagem dos cubanos no Brasil em 1999
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Neilton Araújo de Oliveira foi secretário de saúde de Palmas, capital do Tocantins, entre 1997 e 2000. Especialista em saúde pública, ele é professor da Universidade Federal, onde coordenou a criação do curso de medicina. Na secretaria, Neilton trabalhou diretamente com profissionais cubanos. Pouco mais de uma centena deles foi trabalhar no estado, graças a um convênio com o governo de Cuba. Atual diretor adjunto da Anvisa, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, Neilton contou ao Diário como foi a passagem dos cubanos.
A avaliação de todos os secretários dos municípios, não só a minha, é de que se tratou de algo muito positivo. Houve uma integração e uma identificação enormes com a população. O grosso do atendimento, em cidades do interior do país, é a atenção básica. Os cubanos eram profissionais dedicados e competentes e que faziam com que as pessoas se sentissem seguras e bem atendidas.
Havia, no começo, dificuldades com a língua, mas isso foi superado rapidamente. Pode acontecer com qualquer médico do Brasil. Eu mesmo, depois de me formar em Goiânia e ir para o norte, tive de aprender a me referir às gestantes como “buchadas”. A barreira da linguagem é fácil de ser quebrada se você investe na integração com a comunidade.
A população gostava deles porque estavam presentes no dia a dia. Isso faz toda a diferença. São cidades totalmente abandonadas, que se transformam com médicos que passam a acompanhar os habitantes, vendo as crianças, cuidando dos doentes, estando presentes.
Isso faz muita falta no Brasil. Uma pesquisa que realizei para meu doutorado pelo Instituto Oswaldo Cruz revelava que só 5% dos formandos no Brasil desejam trabalhar em cidades pequenas do interior, onde a carência é bem maior. 60% deles querem ser especialistas.
Se o Mais Médicos cometeu um erro, foi envolver pouco as entidades do setor na formulação do programa. Isso acirrou o corporativismo da classe — que já é grande. As agressões, porém, não ajudam o debate. Isso não constrói nada.
O Mais Médicos propõe que os cubanos sejam acompanhados por tutores, o que é importante. O argumento de que o programa seja eleitoreiro é uma bobagem. Tudo o que qualquer governo faz pode ser interpretado desta forma. O que vale é se funciona.
As acusações de má formação dos cubanos são levianas. No Tocantins, não houve nenhum caso que permita afirmar isso. No Brasil, também temos bons cursos e outros muito ruins, privados ou públicos. A formação profissional nunca dependeu só disso.
Cidades pequenas não precisam de grandes instalações hospitalares. Não é necessário um hospital de transplante em cada lugar. A população pobre precisa de um médico por perto.
O Mais Médicos é uma oportunidade de ouro para discutir a saúde no país. Questões complexas exigem soluções complexas. Pena que esse tipo de debate seja contaminado pelas mesmas pessoas que falam em invasão comunista e outros absurdos.
Eles formam uma força de trabalho fundamental. O Mais Médicos está ocupando um espaço vazio. Na política, não existe vácuo. A formação desses estrangeiros — e não só dos que vêm de Cuba, mas os espanhois, portugueses etc — vai no sentido de integrar e trabalhar perto de quem necessita. No Tocantins, eles ajudaram em algo fundamental: evitar que problemas simples se tornassem problemas graves.
Kiko Nogueira, Diário do centro do mundo
Por Thiago Henrique de Sousa
O governo brasileiro apresentou, um dia antes do desembarque do primeiro grupo de médicos cubanos, a terceira versão sobre o salário destes profissionais. O pagamento integral da bolsa do “Programa Mais Médicos” de R$ 10.000 será repassado ao governo cubano, que por sua vez deve repassar R$ 2.500 a cada médico no Brasil, ou talvez um pouco mais, a depender do custo de vida na região onde este for alocado. Valor muito superior à remuneração mensal em Cuba, de 40 dólares, cerca de R$ 100 reais, o que faz com que esses médicos aceitem trabalhar em condições precárias. Para profissionais de outras nacionalidades, o valor integral da bolsa será repassado ao próprio médico.
O Estado cubano se aproveita desses profissionais como uma espécie de terceirização em escala inédita, gigantesca, estatal. Isso é um escândalo, inaceitável para qualquer um que lute contra as terceirizações no Brasil.
A exportação de profissionais de Saúde é uma das mercadorias mais importantes de Cuba, que rende seis bilhões de dólares anuais, acima do lucro gerado pelo turismo e pela exportação de níquel. Trata-se da expressão da decadência do Estado cubano, não tendo nada de “ação humanitária”. Segundo declaração da Vice-Ministra da Saúde de Cuba, Marcia Cobas, acordos como estes existem em outros 58 países, como no caso dos convênios com a Bolívia e a Venezuela em troca de petróleo.
Esse é um negócio muito interessante para ambos os governos. Para Cuba, representará arrecadação de receitas. Para o governo brasileiro, um mecanismo para responder à carência de médicos no SUS, barateando o custo da mão-de-obra.
É importante alertar que o “Programa Mais Médicos” é uma manobra, visto que os médicos serão contratados como bolsistas de “aperfeiçoamento em serviço”, e isto independe de sua nacionalidade. Trabalhadores que têm seu emprego disfarçado de bolsa de estudo são vítimas de precarização e negação de direitos trabalhistas. Eles não terão direito a vínculos empregatícios, nem direitos trabalhistas pelo tempo de serviço prestado, como FGTS, férias ou 13º salário, como regulamenta a Constituição Brasileira.
Além disso, o pagamento das bolsas de estudos e de todas as despesas do projeto será realizado pela Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares – EBSERH, uma terceirização e mesmo quarteirização, no caso de suas subsidiárias, da gestão pública a qual o Governo Federal tenta implantar em toda a rede de hospitais, institutos e hospitais universitários. Trata-se de uma das maiores transferências na história brasileira de fundo público para o setor privado. Esta empresa estará dispensada de licitar todos os gastos com o programa, favorecendo o desvio de dinheiro público.
Sabemos que existe muita confusão sobre esse tema, porque a população quer que se faça alguma coisa para melhorar o caos na saúde pública. Contudo, o “Programa Mais Médicos”se trata de um remendo que não vai mudar a essência da saúde no Brasil. Não se resolve a situação do SUS apenas colocando um médico, sem infraestrutura e equipe multiprofissional.
visto que não resolve os problemas estruturais SUS que são: o subfinanciamento e a privatização. Ao contrário, aprofundam tais mazelas ao fortalecer o setor privado com a promoção da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares – EBSERH e suas subsidiárias.
O fato é que, independente da nacionalidade dos médicos, cubano ou qualquer estrangeiro, não se faz saúde apenas com médicos. Por vezes, médicos salvam vidas, mas só o fazem se dispuserem de uma ampla rede de serviços (de baixa, média e alta complexidade) de saúde pública de qualidade, com disponibilidade de equipe multiprofissional e insumos.
Se o governo brasileiro tem a verdadeira intenção de ter médicos no SUS, a solução é simples: investimento em infra-estrutura, concurso público com contratação por RJU (Regime Jurídico Único) e a implementação do Plano de Cargos, Carreiras e Salários – PCCS do SUS – com salários justos, estabilidade no emprego e estímulo à qualificação permanente. Para médicos e para todos os profissionais de saúde. Esta é uma reivindicação antiga do conjunto de trabalhadores da saúde pública que em nada avançou nos dez anos de governo do PT.
Defendemos a realização do Revalida ou, caso o governo brasileiro tenha críticas a este, que crie um instrumento real de recertificação para avaliar se os médicos estrangeiros estão aptos a exercer a medicina em nosso país, para que a população não fique a mercê de más práticas médicas. Uma capacitação de três semanas não é um instrumento adequado para avaliação destes profissionais, tanto do ponto de vista técnico quanto da capacidade de se comunicar com a população.
Ao invés de “Mais Médicos”, reivindicamos “Mais SUS”, com 10% do PIB para financiamento da saúde pública e o fim das privatizações e da precarização das condições e relações de trabalho no SUS.