O psicólogo numa Unidade de Saúde da Família sem NASF: vínculo e transversalidade nas ações

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Quais os desafios de ser referência em Saúde Mental de uma Unidade de Saúde da Família com cerca de 20 mil habitantes? O que é acreditar na possibilidade de acesso ao maior número de pessoas a um tipo de trabalho tradicionalmente elitista? Que dispositivos são necessários usar e criar para garantir um trabalho de qualidade? Como desmistificar a Psicologia focada no indivíduo e mostrar sua função clínico-política e clínico-social?

A entrada de um psicólogo em um serviço de atenção básica após meses sem este profissional não é fácil. A demanda reprimida para este tipo de profissional fica enorme e todos querem acesso aqui-agora e ao mesmo tempo. É necessário lidar com a angústia dos profissionais por encaminhamento e com a representação que todos fazem do trabalho do psicólogo. O desafio foi organizar um trabalho de psicologia que desse conta das demandas de seis equipes de Saúde da Família e das necessidades, urgências e emergências dos usuários de uma forma que integrasse o cuidado local e em rede intersetorial, com promoção à saúde e garantia de direitos. Para isto, utilizaram-se como base a tentativa de garantir os princípios do SUS de integralidade, equidade no acesso e universalidade, a Política Nacional de Atenção Básica (2006), a Política Nacional de Humanização (2004 e 2009), Cadernos de Atenção Básica com eixo Saúde Mental (2006 e 2013), Lei No. 10.216 de 2002, que discorre sobre os direitos e proteção dos portadores de transtorno mental, além de princípios teóricos da Análise Institucional de René Lourau na relação instituído-instituinte e do processo de trabalho em saúde de Schraiber (1993) e Mendes-Gonçalves (1992) e no compromisso do profissional com a sociedade (Freire, 1982).

Transversalidade para Guatarri (1981) corresponde ao aumento no grau de comunicação intra e intergrupos, gerando uma tensão problematizadora e abrindo para compor um plano comum.

A experiência se iniciou com busca constante de colegas de trabalho para encaminhar "casos de saúde mental" em espaços inadequados (corredor, cozinha ou onde me encontrassem) e a necessidade de construir locais para não somente se passar o caso, mas para pensar conjuntamente as demandas e o plano de cuidado, constituindo-se em momentos de formação e educação permanente em serviço. Foram construídas estratégias de ação que contemplasse um caminhar do psicólogo em atividades internas e externas à Unidade. Foi proposto um fluxo de entrada do usuário com demanda para saúde mental que não tenha o psicólogo como único vínculo; valoriza-se a corresponsabilização dos atores necessários ao cuidado, utilizando-se de espaços e conceitos potenciais (clínica ampliada, apoio matricial, espaços coletivos de discussão locais e em rede intersetorial) para envolver a família, as equipes, os recursos locais e outras instâncias (CRAS, CREAS, Conselho Tutelar, Vara da Infância, Fórum de Saúde Mental, Rede de Paz etc.). Iniciou-se em espaços locais já existentes e outros foram construídos, conforme segue abaixo:

Ações locais:

– Construção de um cronograma mensal pela psicóloga para estar na reunião de cada equipe de saúde da família para discutir casos novos e seus desdobramentos (que não necessariamente é um atendimento inicial de psicologia, podendo envolver qualquer profissional da UBS) e repensar o plano terapêutico de pessoas já em acompanhamento (podendo envolver ações internas e/ou externas, intersetoriais inclusive).

– Reunião Transversal: encontro semanal entre profissionais da equipe ampliada e com cada equipe de saúde da família para discussão e construção de plano de cuidado de casos complexos, que necessitam intervenções em diversos âmbitos;

– Acolhe Saúde Mental: porta aberta por duas horas em períodos diferentes, um dia  na semana para usuários em acompanhamento remarcarem atendimentos e outras usuários e profissionais tirarem dúvidas e serem escutados;

– Comissão de Ensino: discutir semanal sobre estágios e pesquisas realizadas na UBS e a questão do trabalhador estudante;

– Núcleo de Prevenção à violência (Comissão Pró Relações não violentas): reunião mensal com um representante de cada equipe para discutirmos fluxo interno e o processo de cuidado (interno e externo) dos casos de violência que chegam à UBS; algumas vezes, profissionais da rede intersetorial são convidados a participarem e colaborarem;

– Participação no matriciamento didático de Saúde Mental Infantil e Adulto para os residentes;

– Reuniões: geral e técnica (reunião temática semanal em que os profissionais podem apresentar conteúdos específicos que auxiliem na intervenção de seus colegas);

– Outros: convocação de reuniões de urgência com qualquer profissional e/ou equipe.

Ações Externas

– Participação mensal no Fórum de Saúde Mental para pensar a rede distrital de saúde mental e suas necessidades, movendo coletivamente ações reivindicatórias pertinentes;

– Reunião mensal no CAPS com outros serviços da rede;

– Cursos, Seminários, Terapia pessoal;

Desdobramentos

– Atendimentos diversos: individual, familiar, de casal, de pais, compartilhado, psicorporal, em grupo;

– Visitas e atendimentos domiciliares;

– Reuniões e ações com recursos da comunidade e intersetoriais (escolas, centros comunitários, igrejas, espaços esportivos, ONG, outras instituições de saúde, Conselho Gestor,CRAS, CREAS, Conselho Tutelar, Vara da Infância;

– Relatórios multiprofissionais.

As novidades deste trabalho seguem abaixo:

– Aproximação teoria e prática no processo de trabalho em saúde;

– Educação permanente de saúde mental em serviço;

– Fortalecimento de vínculos e garantia de um trabalho longitudinal ao ter uma única Unidade de Saúde da Família como referência no cuidado;

– Possibilidade de exercer o trabalho matricial, ambulatorial e de acolhimento em Saúde Mental em um único local, tendo a equipe de saúde da família como participante ativa do processo através das discussões de caso, atendimentos compartilhados e presença constante do psicólogo para qualquer retaguarda necessária;

– Novo olhar das equipes sobre o cuidado em saúde mental: a importância de se registrar a história de vida em prontuário, a relação da história de vida unida a demandas sociais e a determinantes sociais no processo de saúde-doença mental;

– Discussões constantes para a prática não abusiva de diagnósticos  e medicamentos;

– Nova postura e autonomia no encontro entre profissional de saúde e usuário do serviço: acolhimento dialogado com negociação de necessidades e escuta qualificada em saúde mental;

– O portador de sofrimento mental entendido como pessoa em seu contexto de vida e em suas potencialidades e não reduzido a conjunto de sintomas que traduzem diagnósticos;

– Relatórios para outras instituições (Judiciário, escolas etc.), tradicionalmente realizados por assistentes sociais e psicólogos, sendo realizados por toda a equipe envolvida;

– Reuniões de equipe com o psicólogo servindo para formar Agentes Comunitários em questões de saúde mental em conduta em ato durante visitas domiciliares;

– Garantia de um lugar do psicólogo, não como um especialista NA atenção básica à saúde, mas como um generalista DA atenção básica à saúde;

– Ausência de fila de espera. O uso integrado de diferentes dispositivos no cuidado tem permitido garantir o acesso de todos que precisam. Conhecendo melhor o trabalho do psicólogo, a equipe de saúde da família pode acolher, fazer uma escuta qualificada, realizar visita domiciliar em saúde mental, inferir sobre a relação entre dinâmica familiar/territorial/social e sintomas e queixas manifestas;

– Identificação do potencial dialógico que o psicólogo tem em relação ao núcleo básico da equipe de Saúde da Família, uma vez que, por não fazer parte de uma equipe específica, percorre todos os espaços, transita pelos territórios, promove espaços de encontro que integram usuários de todas as equipes.