As leis de saúde e de tratamento do diabetes no Brasil e no Estado de São Paulo
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Saúde, na definição dada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), é o completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doenças e outros agravos. É, portanto, a condição plena (física e mental) do ser humano desenvolver suas atividades pessoais e sociais, de forma que consiga viver dignamente.
No Brasil, a saúde consitui-se concomitantamente em direito do cidadão e em dever do Estado (União, Estados e Municípios de forma concorrente – todos juntos ou qualquer um deles individualmente deve garantir o atendimento/tratamento de saúde de que necessita a pessoa) por determinação do artigo 196 e seguintes, da Constituição Federal.
Sendo o direito à saúde um dever do Estado, este tem por obrigação prover aos cidadãos os meios para o seu pleno exercício, garantindo o acesso às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação, mediante políticas sociais e econômicas, bem como deve prestar assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica (Lei nº 8.080/90, art. 6º, I, “d”).
O acesso a referidas ações, serviços e assistência famacêutica, deve ser garantido de forma universal e igualitária (para todas as pessoas sem distinção de condição socioeconômica), porque todos deveriam ser iguais perante a lei (artigo 5º, caput, da Constituição Federal), e porque a Lei do Sistema Único de Saúde (SUS) assim determina em seu artigo 2º e seu § 1º.
A assistência farmacêutica pública é promovida por meio de protocolos clínicos, nome genérico dado às leis e provimentos que estabelecem o rol de medicamentos e tratamentos que deverão ser dispensados para cada doença. O protocolo do SUS prevê os medicamentos e tratamentos obrigatórios em todos os Estados do Brasil, mas cada Estado e Município também pode estabelecer os protocolos clínicos próprios. O problema é que, não raro, tais protocolos são repentinamente revogados conforme a conveniência do Poder Executivo (1), e/ou as normas em que se materializam tais protocolos em nível estadual ou municipal são completamente ignoradas pelos responsáveis pela execução dessas políticas públicas.
No âmbito nacional, os medicamentos para tratamento de diabetes são elencados na Portaria nº 2.583, de 10 de outubro de 2007 (protocolo do SUS de diabetes), contendo apenas os dois tipos mais antigos de insulina: NPH e Regular. Processadas com tecnologia de 1936, essas insulinas não cumprem o papel de garantir o tratamento adequado da doença (artigo 175, § único, IV, da Constituição Federal) (2).
No Estado de São Paulo, o tratamento público de diabetes está previsto na Lei nº 10.782, de 9 de março de 2001, cujo artigo 3º determina que "A direção do SUS, estadual e municipal, garantirá o fornecimento universal de medicamentos, insumos, materiais de autocontrole e auto-aplicação de medicações, além de outros procedimentos necessários à atenção integral da pessoa portadora de diabetes", como forma de atender "o direito à medicação e aos instrumentos e materiais de auto-aplicação e autocontrole, visando a maior autonomia possível por parte do usuário" (artigo 1º, V).
Isto significa que, no Estado de São Paulo, havendo justificativa e indicação médica, mediante apresentação de relatório e receita de médico da rede pública ou privada de saúde, todo e qualquer medicamento deverá ser fornecido ao diabético. Infelizmente, esta é uma daquelas normas mencionadas anteriormente: completamente ignorada pelo Estado.
Érica (3) apresentou estes documentos (e ainda outros comprovando a necessidade dos insumos requeridos administrativamente) à Secretaria do Estado da Saúde de São Paulo, mas não recebeu qualquer resposta ao pedido de fornecimento dos materiais para manutenção da bomba de infusão de insulina.
Considerando que o diabetes mal tratado pode levar à morte precoce do portador da doença, a omissão de fornecimento de terapêutica de que a paciente necessita para viver significa violação de seu direito à vida, além de violação do direito à saúde e descumprimento do dever estatal (artigos 5º, caput, e 196, da Constituição Federal).
Assim, Érica procurou-me para, com base nas leis supramencionadas, requerer judicialmente a garantia do seu direito à vida e à saúde. Propus a ação requerendo o fornecimento liminar dos insumos da bomba de insulina, ante a necessidade imediata do tratamento e a amplitude de normas constitucionais e infraconstitucionais que amparam o pedido, que se resume à garantia do direito da paciente de viver dignamente, com saúde, conforme definição da OMS.
Na próxima postagem, relatarei a resposta do Juiz, e a conversa que tivemos sobre o direito à saúde.
(1) Recentemente, no início deste ano de 2013, foi revogada portaria da Secretaria Municipal de Saúde de Jacareí (na região do Vale do Paraíba, Estado de São Paulo) que determinava o fornecimento da insulina glargina (nome comercial lantus), suspenso de um dia para o outro. Os usuários desta insulina passaram então a receber a insulina NPH, e tiveram que recorrer ao Poder Judiciário para voltar a receber a insulina que vinham usando até então (lantus).
(2) Sobre a NPH, leia mais na postagem "Sobre carroças e diabéticos brasileiros, ou a insulina brasileiro-ucraniana"
(3) Nome fictício dado à minha cliente para preservar o seu direito à intimidade.
Reflexões desta postagem:
– Pessoal: a Justiça não é feita pelas leis, mas pelos homens e mulheres que aplicam e lutam pelo cumprimento das leis, que dicotomicamente também podem ser usadas como fundamento para a prática de injustiças;
trechos retirados do livro "O Sistema Único de Saúde e suas Diretrizes Constitucionais", de Mônica de Almeida Magalhães Serrano:
– "O Sistema Único de Saúde – SUS, que estabeleceu bases para um novo modelo de gestão da saúde pública no país, nasceu com o propósito de dar concretude ao direito à saúde, através da construção de uma rede pública generalizada e hierarquizada, de acordo com os princípios de universalização, integralidade da atenção, descentralização, pariticpação social e igualdade no direito ao acesso de todos os cidadãos às ações e serviços de saúde, em todos os níveis de complexidade". (págs. 09/10);
– "…direitos fundamentais são aqueles previstos em uma determinada ordem constitucional, com o objetivo de proteger a dignidade da vida humana em todas as suas dimensões." (pág.12);
– "A interpretação das normas constitucionais deve sempre ser realizada visando imprimir ao texto a maior eficiência possível, sem descuidar do privilégio a ser dado aos direitos fundamentais, figurando a dignidade da pessoa humana como vetor, erigida a um dos princípios fundamentais da República (Art. 1º, inciso III). (…) de nada adianta o Estado garantir o direito à vida digna se não oferece uma estrutura razoável e adequada de saúde pública a todos de forma indistinta e gratuita." (págs. 38/39);
– "… a norma se torna eficaz se observada pelos seus destinatários: a eficácia decorreria da eficiência (Geltung), ou seja, do fato de ser a norma verdadeiramente observada ou obedecida no meio social a que se destina. Deve, pois, a Administração Pública adequar sua condutas no trato da coisa pública, buscando a implementação e aperfeiçoamento cada vez mais amplo e progressivo das normas sociais, que possuem plena eficácia, com condições imediatas de aplicabilidade, conferindo-se maior rigor no tocante aos direitos sociais que contemplam o denominado núcelo mínimo para o exercício de uma vida digna, tal qual o direito à educação básica e à saúde". (pág. 74).
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