Homenagem a Francisco Domingos de Oliveira

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21/12/2013 – Rompendo com o instituído, mais uma vez, dois dias após a morte de um paciente, deixo o registro de minhas emoções para ser anexado ao prontuário.

Francisco Domingos de Oliveira morou no hospital Dr. João Machado por aproximadamente 50 anos. Passou por todos os tipos de tratamento num hospital psiquiátrico, onde foi cuidado ou muitas vezes, descuidado.

Viveu literalmente nas grades, tendo sido libertado da clausura na década de 80, graças a um tratamento realizado por Dr. Elger Nunes, com o apoio do Dr. Eduardo Afonso.

Costumo dizer que Francisco criou em ato, o Programa de Gratuidade dos transportes coletivos, quando pactuava a seu modo, com os motoristas e cobradores de ônibus da linha Vila São José, suas idas ao bairro das quintas para visitar a mãe.

Há oito anos integrava a Moradia Assistida deste hospital, um espaço destinado aos que se tornaram moradores pela forma equivocada com que se tratou historicamente, a loucura.

Francisco iria morar na 3ª Residência Terapêutica do município do Natal, em processo de implantação, já com bastante atraso; porém sua última viagem tirou dele a realização de mais um sonho, se é que o processo de institucionalização já não lhe havia interditado o desejo de liberdade.

Falava pouco, mas tinha uma risada forte (Ho, ho, ho,…), que não pudemos deixar de registrar em sua despedida, através da música que cantamos para ele, no momento em que a última porta se fechava – a tampa do caixão: ”Quero sua risada mais gostosa, esse seu jeito de achar que a vida pode ser maravilhosa.” É isso mesmo, apesar de sua história de sofrimento, a risada de Francisco traduzia contentamento. Talvez alguns a percebesse como um sintoma (risos imotivados). Prefiro apostar na possibilidade de vida que restava em um sujeito com tantas marcas da segregação e do isolamento.

Foi na Moradia Assistida que Francisco teve seus últimos momentos de alegria e de respeito a sua dignidade humana e foi em seu leito de morte que pudemos devolver-lhe outro tantinho dessa dignidade que a discriminação e o preconceito lhe arrancaram, ao longo de sua história.

Registramos a sensibilidade, o carinho e o respeito que a Assistente Social Elizabeth Guerra e o médico plantonista, Dr. Adriano Marcos, que também é coordenador de saúde mental do Estado do Rio Grande do Norte, tiveram ao me dar a noticia do óbito em 19/12/2013. Eles sabiam que o vinculo que estabeleci com Chico, como eu carinhosamente o chamava, o tornavam mais que um paciente: um amigo, alguém que me deu a oportunidade de crescer, pessoal, profissional e espiritualmente.

Registramos também, o apoio de Dra. Louise Seabra, diretora desse serviço que logo após receber a noticia me telefonou, se colocando à disposição e oferecendo seu ombro amigo.

Ressaltamos o carinho e a dedicação de Francisco Pereira e Lucia Costa, técnicos de enfermagem na Moradia Assistida, por serem mais que cuidadores, seres humanos especiais que expressaram sua dor dizendo: “Chico é um pai para mim” (Lucia Costa) e “Chico um paciente que eu quero muito bem” (Francisco Pereira). Niege Marcos, técnico de enfermagem da Moradia, saiu do plantão noturno e também foi prestar sua homenagem.

As mensagens e os telefonemas de Leidiane Queiroz, Terapeuta ocupacional da Moradia Assistida, dos ex- médicos do referido serviço e eternos amigos, Thiago Melo e Fátima Lima, da Assistente Social Vilca Araújo e da também assistente social e ex-diretora geral do João Machado, Geneci de Andrade, companheiras de longas caminhadas, acalentaram nossa dor e reavivaram nossas esperanças por um mundo melhor. Aparecida França, ex-secretária de saúde do município de Natal e responsável pela implantação da primeira Residência Terapêutica de nossa cidade nos telefonou emocionada quando acompanhávamos o cortejo, rumo ao cemitério Bom Pastor II, onde ele foi sepultado. A estagiária de psicologia Marcia Costa também prestou sua solidariedade. Adriana Izaura, farmacêutica do hospital e Suerlania Ferreira, da Divisão de Serviços Gerais, levantaram mais cedo, na manhã do dia 20/12/2013, para despedirem-se do amigo, antes de assumirem mais uma jornada de trabalho. Francisco Xavier, funcionário de apoio do Serviço Social e nosso fiel colaborador, cuidou da parte burocrática, necessária ao sepultamento.

Registramos também a presença de boa parte da equipe da Moradia Assistida, de outros companheiros de trabalho e do estagiário de Psicologia Mauricio Cirilo, no velório. Dra. Elzemir, que integra nossa equipe há pouco tempo, mostrou sua sensibilidade nas silenciosas lágrimas; Conceição Barros, serena, mas bastante sensível, deixou transparecer sua dor e Elzimar, chorando, dizia “vou lembrar sempre dele”. Marildo lembrava o cuidado que estávamos tendo para adaptarmos o espaço físico do quarto que seria dele na residência terapêutica, às suas necessidades. Juçara Machado, filha do fundador do hospital (Dr. João Machado), Kátia Nogueira, Mércia Maria e Zaia Miranda também se fizeram presentes.

Dr. Elger chegou logo cedo e relembrando suas histórias nos emocionou dizendo: “ Chico foi um professor para mim…”. Janilde Godeiro, sempre atenta, também fazia parte do grupo de ouvintes.

Os rituais religiosos e as homenagens de despedida foram coordenados pela Terapeuta Ocupacional Gorete Albuquerque, cuja evolução espiritual nos reanima e nos faz crer em outro plano.

E o que dizer de Dra. Adriana Gurgel, promotora da 42ª Promotoria de Registro Público e Interdição para quem prestamos contas dos recursos financeiros de nossos moradores? Uma profissional sensível e humana que nos atendeu prontamente, por contato telefônico, nos liberando verbalmente, para utilizarmos parte dos recursos financeiros amealhados por Chico para lhe fazermos a última homenagem. Ficará registrada em minha memória a observação que ela fez: “Claro Fátima, façam tudo que ele merece, com flores e tudo que for preciso.”.

Certamente nos esquecemos de agradecer a muitas pessoas que aliviaram o peso de seu fardo por ocasião de sua passagem neste mundo, mas Deus cobrirá a todos com muitas bênçãos.

A parte mais difícil foi dizer a seus companheiros e irmãos de coração que Chico não está mais entre nós.

Tivemos o cuidado de fazer abordagens individuais, em respeito às singularidades, como costumamos fazer.

Quatro dos moradores fizeram questão de despedir-se do amigo (Edvan, Inês, Valdenir e Alderi).

Três disseram que não gostavam de ver ninguém morto e respeitamos suas decisões (Nogueira, Antonio Freire e Eduardo).

Tereza Cristina apenas gesticulava e nos movimentos das mãos parecia dizer que não queria ouvir.

Eudes não fez nenhum comentário. Após a noticia saiu de perto de mim, sem olhar para trás.

Fátima Cabral e Francisca Adelino falavam de outras coisas e achamos o comportamento sugestivo de negação e por fim, Antônia Adelino me emocionou repetindo um trecho de uma música que dizia: “Serra, Serra, serra dor ….”. É, talvez só um serrote fosse capaz de arrancar tantas dores.

Chico traduzo o meu carinho por você dizendo: Cuidar é um gesto de amor. Descanse em paz.

Você fez história.

Saudades,

Fátima Couto.


Algumas imagens valem mais que muitas palavras. Obrigada Chico por ter tido o prazer de passear com você, tomar um simples café… E tantas outras coisas… As fotos são de 2013 na Feira de Artesanato da Praia do Meio, no Museu do Vaqueiro, no São João no HJM, no atendimento em conjunto com a terapeuta ocupacional Iara e em um lanche simples na cozinha da MA.

Fotos: Leidiane Queiroz